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18/03/2011 - 08h19

Sentar em Londres

IVAN LESSA
COLUNISTA DA BBC BRASIL

Uma cidade nunca é aquilo que mais se divulga dela. Ou mesmo que mais se guarde na fotografia ou se compre no cartão-postal.

Sei muito bem que dei uma topada (se eu tivesse a locomoção necessária) das bravas num tremendo de um lugar-comum. Mas é sempre bom repetir. A Humanidade tende a se esquecer do essencial. Por isso anda - anda! Já chego lá: -- por aí a se lembrar. Ao menos quando se chega a uma certa idade. A minha, por exemplo. E botemos idade nisso.

Eu me lembro como se fosse hoje do tempo em que eu andava em Londres.

Antes relembrar frisando algumas andanças minhas de outrora: não, o Rio não é aquele do Cristo Redentor nem do Pão de Açúcar ou das moças bem dotadas nas praias. Mesmo no tempo presente, ele tem mais, muito mais a dar. Pois mais, muito mais ele o é. Quase nunca o óbvio.

Às vezes, um banco em que se sentou num subúrbio distante. (Péssimo exemplo, eu deveria ter mencionado o footing antigão ou a linha-de passe na praia). Um cafezinho fraco que se tomou em pé conversando com um cara de pilequinho do lado. A espera na fila do - quem se lembra? - lotação.

Nada a ver com História ou histórias. Isso são coisas de gente que não sabe parar quieta.

Viver é, descobri tarde na vida, e numa marra imposta pelas circunstâncias, viver, repito, é parar. Não ofender a vida com movimentos, idas e vindas, quase sempre desnecessárias.

Pode-se perfeitamente defender o caso de que o Rio não é mais o que foi, que sua grande década foi essa ou aquela outra. Isso é outro papo. Não desinteressante, mas outro papo.

Peguem fotos antigas nos sites devidos. Todo mundo se mexendo. Para cima e para baixo.

Há, também, cidades mais complicadas que outras. Digo isso sem achar que seja vantagem ou que conte ponto. Fico onde conheço (mentira, nunca se conhece nada, ninguém, cidade alguma): Londres. Tenho, de enfiada, 33 anos de Londres. Cá arribei num dia 21 de janeiro, no ano de 1978. Antes disso, eu já passara 4 anos zanzando por aqui. Pela cidade de Londres, pela BBC de Londres. São, pois, ao todo, 37 anos ao todo de Londres. Quase, mas quase mesmo, a minha idade.
E eu pra cima e pra baixo.

Sendo pessoal, o que sempre me deixa sem graça e ruborizado, além de me sentir pior do que já venho me sentindo: de uns tempos para cá, graças a 50 anos de 2 maços de cigarro por dia, veio o homem, ou la belle dame sans merci, com a conta na mão.

Não posso dizer que tenha valido a pena. Eu fumava com a maior naturalidade. Um Humphrey Bogart mirim e mais tarde adulto. Não me lembro de um único cigarrinho que eu tenha curtido adoidado. Sei que pegavam bem depois disso ou daquilo outro. Só. Eu era uma paisagem envolta em fumaça e, como os lanterninhas do cinema a que eu ia, não sabia.

Custo para chegar ao cerne da questão: a conta. Tudo me é bastante difícil. Agora, aqui estou, há um bom tempo, com enfisema, dispnéia, arritmia cardíaca, cansaço constante, o diabo. Ir da sala para a cozinha, virou uma travessia dos Alpes. Impossível andar mais de três ou quatro metros sem parar em algum lugar para pegar fôlego.

Não aguento mais gente delicada na rua me perguntando, numa dessas horas, 'Are you all right, sir?' Minto. Aguento. Fico sem graça, digo que estou apenas catching my breath mas fico grato por aqui estar e morar e haver tanto canal de televisão, DVD para alugar, livro para ler, computador para assuntar.

Eu, que ontem fui aquele do bicho-carpinteiro, o que deixava o escritório e fazia um longo percurso de livrarias e casas de discos do centro, sou hoje um homem sentado. Sentado estou, sentado ficarei, é o que tudo me grita no apartamento silente de tarde.

Inalantes, diuréticos, oito remédios por dia, médico pago, médico do sistema de saúde, e eu, sentado, ou gastando uma fortuna que não tenho de táxi.
Londres, pois, e seus esplêndidos restaurantes, o incrível teatro que ainda resiste a tudo e tanta coisa mais, tudo isso acabou. Continuo sentado.

Como Fernando Pessoa ficava na janela, eu fico na poltrona da sala. Cessam aí todas as semelhanças. Ele podia subir e descer as ruas que são o fado puro de Lisboa e eu, tentando me queixar o mínimo possível, mas queixando estou, bem sei, continuarei sentado.

Aos eletrodomésticos que me sustentam, acrescento, esquecido que sou, do microondas, que, sem ele, eu já teria morrido de inanição. Morto de fome numa poltrona da sala.

Pois assim é Londres. Uma cidade com poucos bancos nas ruas, à exceção dos parques, mas com muita poltrona e sofá em casa, o que é comprovado pela profusão de comerciais na TV, que até esses passei a ver. Com a maior atenção. Sentado. Minha posição de sentido.

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