Fungos em fezes dão pistas sobre fim de bichos gigantes

Crédito: Wikimedia Commons Gliptodonte (parente extinto dos tatus)
Gliptodonte (parente extinto dos tatus)

REINALDO JOSÉ LOPES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Um dos maiores mistérios da pré-história brasileira ficou um pouco mais claro graças à análise meticulosa de fungos que crescem no cocô de herbívoros de grande porte. O declínio desses fungos a partir de 18 mil anos atrás sugere que a megafauna do Pleistoceno (ou seja, os mamíferos gigantes que existiam por aqui na Era do Gelo) começou a desaparecer antes que os seres humanos chegassem ao atual Brasil.

Esse dado, contudo, talvez não seja suficiente para demonstrar a inocência dos primeiros habitantes do país no fim da megafauna. É que a extinção dos bichos só ocorreu de vez há uns 11,5 mil anos –época em que o Homo sapiens já estava instalado por aqui.

Faz sentido imaginar, portanto, que tenha havido uma interação entre a causa inicial do declínio (provavelmente a mudança climática) e a ação humana para que o desaparecimento dos animais se consumasse.

Tais conclusões estão num estudo publicado na revista científica "Quaternary Research" por um trio de pesquisadores: Marco Felipe Raczka, brasileiro que faz pós-doutorado no Instituto de Tecnologia da Flórida (EUA), Paulo Eduardo de Oliveira, do Instituto de Geociências da USP, e Mark Bush, também do instituto da Flórida.

LAGOA SANTA

O trio estudou um dos mais importantes complexos pré-históricos do Brasil, a região de Lagoa Santa (MG), perto de Belo Horizonte.

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Fósseis de grandes mamíferos extintos e de seres humanos têm sido encontrados por cientistas nas cavernas calcárias de Lagoa Santa desde o começo do século 19.

A megafauna mineira, a exemplo da de outros locais do continente, incluía feras como preguiças-gigantes, parentes dos tatus do tamanho de um Fusca, gonfotérios (primos dos elefantes, também com tromba e grandes presas), ursos, cavalos e dentes-de-sabre (que não eram tigres, como se costumava dizer –eram parentes distantes dos felinos atuais).

Para reconstruir a história populacional desses bichos e a da vegetação que existia ao redor deles, os pesquisadores recolheram e dataram camadas de sedimentos de duas lagoas, conhecidas como Mares e Olhos D'Água.

A ideia é que, ao longo dos milênios, grãos de poeira e de pólen, pedacinhos de carvão e outros resquícios do ambiente circundante foram afundando e chegando ao leito das lagoas, formando uma espécie de biblioteca do que havia na região em cada período.

As datas obtidas pelos cientistas nos dois corpos d'água vão de 23 mil anos atrás até épocas recentes. Uma constatação importante derivada da análise é que o ambiente na região de Lagoa Santa era bem diferente do atual.

Hoje, a vegetação nativa da área é uma mistura de mata atlântica e cerrado, mas durante o Pleistoceno parecem ter sido comuns por ali as espécies de árvores típicas de regiões mais frias e/ou mais elevadas do país, como as araucárias (não por acaso, também conhecidas como pinheiros-do-paraná) e os podocarpos. Esse tipo de cobertura vegetal bate com a estimativa de que, naquela época, a temperatura média do Sudeste brasileiro era uns 5 graus Celsius mais fria do que a de hoje.

A outra pista crucial veio da abundância relativa dos esporos de fungos do gênero Sporormiella, que costumam estar presentes em grande quantidade, por exemplo, em lagos em cujas vizinhanças o gado pasta com frequência –o fungo nas fezes dos bichos acaba sendo carreado para a água.

Em estudos feitos na América do Norte, por enquanto o lugar onde o desaparecimento da megafauna foi estudado de forma mais completa, os últimos registros de fósseis dos bichões mais ou menos coincidem com a diminuição de Sporormiella nos sedimentos, e o mesmo vale, grosso modo, para os Andes.

Em ambas as lagoas do interior mineiro, os registros mais antigos são de abundância dos esporos fúngicos (na lagoa Olhos D'Água, por exemplo, chega a haver mais de 4.000 esporos por centímetro cúbico de sedimento). No entanto, a partir de 18 mil anos atrás, os restos de Sporormiella vão ficando paulatinamente mais raros, até desaparecer totalmente entre 12 mil e 11,5 mil anos atrás.

GOLPE DE MISERICÓRDIA

Dois detalhes cruciais precisam ser levados em consideração para tentar entender o que aconteceu.

Primeiro, de fato, o início desse processo, provavelmente ligado à extinção da megafauna, coincide com uma fase mais quente e úmida do clima, perturbando o habitat tradicional dos bichos e afetando a população deles. Nesse momento, ainda não havia seres humanos nas imediações de Lagoa Santa –nem, pelo que sabemos, no resto do Brasil.

O segundo ponto, porém, é que as condições climáticas voltaram a ficar mais frias por alguns milênios na região –e mesmo assim as perdas populacionais da megafauna continuaram, e isso numa fase em que o Homo sapiens já estava colonizando o interior mineiro. Esse conjunto de dados é que leva os pesquisadores a postular que a ação humana pode ter sido o golpe de misericórdia em espécies que já não andavam muito bem das pernas.

O que falta para encerrar o caso, então? Além de confirmar o quadro geral em sedimentos de outros locais do país, seria importante achar evidências diretas de que os primeiros brasileiros caçavam mesmo a megafauna.

Em Lagoa Santa, curiosamente, isso não existe: as escavações mais intensas feitas até hoje na região sugerem que os moradores originais capturavam mamíferos de porte mais modesto, como veados e porcos-do-mato. Nada que se compare, portanto, aos grandes sítios de abate de mamutes encontrados nos EUA no século passado.


FALTOU CLIMA OU FOI O HOMEM?

Entenda o estudo sobre o fim da megafauna no Brasil

A MEGAFAUNA

Até cerca de 10 mil anos atrás, a região era habitada por uma conjunto impressionante de mamíferos de grande porte, hoje extintos. Veja exemplos de espécies da região de Lagoa Santa

Crédito: Fotos Wikimedia Commons e "Pnas"
Gliptodonte (parente extinto dos tatus)
Crédito: Dente-de-sabre _Smilodon populator_
Crédito: Preguiça-gigante _Catonyx cuvieri_

A ANÁLISE

Os cientistas recolheram, dataram e analisaram sedimentos do fundo de duas lagoas da região, conhecidas como Marés e Olhos D'Água. Eles procuraram, entre outras coisas, esporos de um fungo que só nasce em fezes de grandes mamíferos

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OS RESULTADOS

A proporção dos esporos do fungo nos sedimentos começa a cair por volta de 18 mil anos atrás, antes da chegada dos seres humanos à região, chegando a níveis próximos de zero por volta de 11 mil anos atrás, quando já há humanos em Lagoa Santa

CONCLUSÃO

O declínio da megafauna na área começou antes da interferência humana, talvez por razões climáticas, mas pode ter se intensificado por causa da caça

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