Pedra lascada indica que ancestrais humanos saíram da África mais cedo

Pesquisa na Jordânia liderada por pesquisadores do Brasil e da Itália sugere que dispersão pelo mundo começou há 2,4 milhões de anos

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São Carlos

Artefatos de pedra rudimentares descobertos na Jordânia indicam que os ancestrais da humanidade podem ter deixado seu berço africano há 2,4 milhões de anos, cerca de meio milhão de anos antes do que se imaginava.

A pesquisa, liderada por pesquisadores do Brasil e da Itália, sugere um novo cenário para a expansão dos membros do gênero humano pelo Velho Mundo. Para os cientistas, essa jornada teria começado com os modestos Homo habilis, criaturas de apenas 1,20 m de altura e cérebro relativamente pequeno que foram as primeiras a dominar a arte de produzir instrumentos a partir de seixos.

“De posse de uma tecnologia da pedra lascada, esses caras podiam enfrentar qualquer tipo de ambiente, exceto o frio extremo”, afirma o paleoantropólogo Walter Neves, do Instituto de Estudos Avançados da USP.

Walter Neves segura ferramenta de pedra lascada datada de 2.4 milhões de anos encontrada na Jordânia
Walter Neves, professor sênior do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, junto com a ferramenta de pedra lascada datada de 2.4 milhões de anos encontrada na Jordânia - Adriano Vizoni/Folhapress

Neves é um dos autores do estudo sobre os artefatos achados no vale do rio Zarqa, tributário do Jordão que corta o território jordaniano. Os resultados serão publicados na revista científica Quaternary Science Reviews. Entre os autores do estudo também estão Astolfo Araujo, da USP; Giancarlo Scardia, da Unesp de Rio Claro; e Fabio Parenti, da Universidade Federal do Paraná e do Instituto Italiano de Paleontologia Humana.

Se os resultados estiverem corretos, eles ajudarão a dar sentido a uma série de peças do quebra-cabeças da evolução humana que já não andavam se encaixando bem desde o começo da década passada.

Ocorre que a maioria dos paleoantropólogos ainda defende que o primeiro membro da nossa linhagem a deixar a África teria sido o Homo erectus, há 1,9 milhão de anos. Os membros dessa espécie tinham compleição esguia, pernas longas e estatura similar à média dos humanos modernos, bem como um cérebro relativamente grande, que podia chegar a dois terços do volume do nosso.

No entanto, diversos achados não pareciam ser compatíveis com a primazia do H. erectus como primeiro grande emigrante. Crânios achados em Dmanisi, na Geórgia, a meio caminho entre a Europa e a Ásia, apresentam grande diversidade de morfologia e tamanho, com alguns indivíduos que parecem ser menores e mais primitivos que o H. erectus, de idade estimada em 1,8 milhão de anos.

No Extremo Oriente, a situação é ainda mais misteriosa. Na China, existem artefatos de pedra que poderiam ultrapassar os 2 milhões de anos de idade, enquanto a Indonésia e as Filipinas chegaram a abrigar hominídeos diminutos (cerca de 1 m) e de cérebro pequeno, apelidados de “hobbits”. Essas espécies, para alguns pesquisadores, não teriam como descender do grandalhão H. erectus.

As descobertas no vale do rio Zarqa, tanto pela datação dos artefatos quanto pelos métodos rudimentares de lascamento, apontam para uma associação com o H. habilis. Além disso, o Oriente Médio era, e ainda é hoje, o corredor natural entre África e Ásia —expansões mais recentes de ancestrais da humanidade também passaram por lá.

“Nesse caso nós subimos em ombros de gigantes”, conta Astolfo Araujo. Equipes europeias e da Jordânia já tinham explorado a região nos anos 1980 e 1990, achando fósseis de animais extintos e instrumentos de pedra. “Nosso colega Fabio Parenti fez parte desses trabalhos, e foi sua a inspiração de continuar investindo naquela área. Ocorre que, na época não se conseguiu datar esses depósitos.”

Foi justamente o que a equipe fez agora, usando uma combinação de métodos, explica Giancarlo Scardia, da Unesp. Camadas de basalto (mais profunda) e calcita (mais perto da superfície) foram datadas levando em conta a transformação gradual de elementos químicos radioativos em outros tipos de átomo, processo que ocorre a uma taxa bem conhecida, como o tique-taque de um relógio.

Também foi aplicado o paleomagnetismo, que se vale do fato de que o campo magnético da Terra varia ao longo de centenas de milhares de anos. “A rocha pode se comportar como uma fita magnética e, quando se forma, grava o sinal do campo magnético da Terra, tanto a direção quanto a intensidade”, diz Scardia. 

Além da datação e da análise dos instrumentos de pedra —alguns classificados como cortadores usados para várias finalidades—, os pesquisadores também conseguiram estimar, de modo preciso, como eles foram produzidos e acabaram se distribuindo pelas camadas de sedimentos.

“Há muitos artefatos que mostram um grau de preservação e uma concentração em um mesmo local tão grande que só podem ter sido lascados ali. Achamos duas metades de uma mesma lasca que estavam a 20 cm de distância uma da outra. Eles provavelmente estavam trabalhando esses instrumentos nas barras cascalhentas e nas praias de um antigo rio”, diz Araújo.

Segundo Scardia, a equipe chegou a enviar os resultados para publicação na Science, que se interessou pelo trabalho e o enviou a revisores anônimos, como é de praxe em publicações científicas.

“Aí encontramos um pouco de ceticismo por várias razões que têm pouco a ver com a ciência. O comentário geral foi que precisávamos de mais dados, mais escavações etc.”

De qualquer modo, Neves e seus colegas argumentam que o trabalho ajuda as pistas díspares a fazerem sentido: uma expansão mais antiga do Homo habilis explicaria o tamanho modesto dos “hobbits” e a diversidade dos fósseis da Geórgia, correspondentes a uma transição entre a espécie mais antiga e o H. erectus.

A pesquisa recebeu financiamento da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e da Fundação Wenner-Gren de Pesquisa Antropológica.

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