É economista, cofundadora da Rede Meu Rio e diretora da organização Nossas. Curadora do blog #AgoraÉQueSãoElas. Escreve às segundas, a cada duas semanas
Falsas Equivalências
Fabiano Rocha - 11.fev.2017/Agência O Globo | ||
Moradores se queixam por utilização de casas pela PM como base em confrontos com traficantes |
Sexta-feira passada, 28 de abril. Dia de greve geral. E dia da decisão judicial mais importante e simbólica que vimos em algum tempo: a liminar exigindo que os policiais da UPP Nova Brasília, no Rio de Janeiro, deixassem as casas que haviam ocupado indevidamente como base militar.
A decisão não é apenas um alívio para os moradores e moradoras que durante meses conviveram com militares ocupando suas lajes. Ela é também o anúncio do fim de uma falsa equivalência, entre a violência cometida pela polícia e a violência cometida por traficantes de drogas.
Menos de uma semana antes de a Justiça se pronunciar sobre o caso, uma audiência pública foi convocada para que moradores e policiais pudessem discutir a situação, que já se tornava insustentável. Durante a audiência, um dos policiais fez a pergunta: por que os moradores filmam e denunciam a polícia mas não fazem o mesmo com o tráfico?
Aqui, cabe lembrar que policiais e traficantes são, em ambos os casos, vítimas –quase sempre pobres, quase sempre pretas– de uma política falida e hipócrita de guerra às drogas. Nossos policiais, aliás, são os que mais morrem e os que mais matam no mundo.
Pedro Pantoja | ||
Imóveis com paredes esburacadas após tiroteios entre PM e traficantes no Complexo do Alemão |
Mas as equivalências param por aí. Não é possível "protestar contra o tráfico" porque o tráfico é o tráfico: um movimento que foge do controle do Estado, que não pode ser submetido ao escrutínio público ou regulação. Já a polícia é o Estado, e se ela for violenta, existem (ainda bem!) mecanismos institucionais para acabar com o problema. Cobrar de um morador do Complexo do Alemão que ele filme a violência dos traficantes tanto quanto a violência policial é de uma desonestidade brutal.
Infelizmente, vivemos na era das falsas equivalências. Também nessa semana, a marca de cervejas Heineken colocou no ar uma propaganda que correu as redes sociais. Nela, pessoas com visões políticas diferentes eram convidadas a se conhecer e discutir suas divergências tomando uma cerveja gelada. Parece fofo, mas não é. Porque as tais diferenças políticas não eram apenas diferenças de opinião: em um dos casos, por exemplo, a dupla é composta por uma mulher trans e um homem que diz que "não é possível ser trans". Em outro, um sujeito que "não acredita" em mudanças climáticas conhecia um ativista que sustenta que temos que agir mais rápido para evitar uma catástrofe ecológica.
E é aí que mora o problema: ser um ser humano não é ter uma opinião, é ser um ser humano. Negar a humanidade de outra pessoa, afirmando que não é "possível" ela ser quem é não é ter uma diferença de posicionamento político, é oprimir. Já no terreno das ciências, não é possível dar o mesmo peso a alguém que não acredita em mudanças climáticas -uma posição defendida por uma minoria absolutamente ínfima de especialistas- e alguém que acredita. As duas posições não são equivalentes. Assim como policiais e traficantes não são equivalentes. O "outro lado" de ser preto não é ser racista. Ouvir o outro não é ouvir um outro que nega seu direito básico de existir.
Em tempos de polarização, o diálogo é mais necessário do que nunca. E é claro que as pessoas podem e devem mudar, aprender e trocar. Mas a violência da opressão não é algo a ser debatido: é algo a ser combatido. E agora que as mudanças climáticas se aceleraram, afetando primeiro os mais pobres e vulneráveis, não temos mais tempo pra discutir se elas existem ou não. É preciso agir.
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