Alessandra Orofino

É cofundadora da ONG Meu Rio e diretora da organização Nossas. Curadora do blog #AgoraÉQueSãoElas.

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Alessandra Orofino

Acolher e punir

Crédito: Kevin Winter - 22.jul.2011/France Presse ORG XMIT: - SAN DIEGO, CA - JULY 22: Actor Aziz Ansari speaks at "30 Minutes Or Less" Panel during Comic-Con 2011 at the San Diego Convention Center on July 22, 2011 in San Diego, California. Kevin Winter/Getty Images/AFP == FOR NEWSPAPERS, INTERNET, TELCOS & TELEVISION USE ONLY ==
O ator americano Aziz Ansari em evento em San Diego em 2011

O ator e comediante americano Aziz Ansari é objeto de fervorosa discussão nas redes sociais depois que um blog publica um relato no qual uma jovem descreve um encontro entre os dois e afirma que Aziz teria "ignorado sinais verbais e não verbais", forçando a barra para transar.

Mark Zuckerberg anuncia ter feito mudanças importantes no algoritmo do Facebook. A partir de agora a rede mostrará menos notícias publicadas por páginas e mais posts de amigos e família.

Para entender o que se passa na interseção entre os movimentos ditos identitários –aqueles que ousam articular demandas por um novo normal– e a lógica ao mesmo tempo implacável e nada democrática das redes sociais, é preciso entender esses dois fatos. E para fazê-lo, deve-se começar descolando definitivamente a lógica do acolhimento da lógica da punição.

A Justiça é falha. Ela erra. A possibilidade desse erro é o que deveria nos manter sempre no campo de quem sustenta o direito à ampla defesa e o freio da nossa sanha punitiva. O desejo de punir abusadores sexuais, racistas e homofóbicos de toda sorte pode até ser legítimo, mas jamais poderá ser realizado na velocidade e quantidade exatas desejadas pelas vítimas. Porque o preço que pagamos para evitar a punição de inocentes é que muitos culpados acabam livres de punição. E esse é um preço justo. Vale mais a pena ter um criminoso solto do que um inocente preso.

Eu acredito em todas as mulheres que me dizem que foram abusadas, e me disponho a acolhê-las da forma que puder. Isso não quer dizer que eu ache que a palavra delas deva ser suficiente para punir alguém. É nesse espírito que escolho ler o relato publicado sobre Ansari: não como uma demanda por punição, e sim como uma abertura de conversa sobre como a própria socialização dos homens –à base de muita pornografia misógina– torna difícil para grande parte deles reconhecer a experiência do outro.

Mas não seria o relato, em si, uma punição mediada pelas redes sociais? Creio que não. Sobretudo porque não se trata de uma simples acusação de abuso, e sim de um depoimento detalhado do que aconteceu naquela noite –dando ao leitor a possibilidade de tirar suas próprias conclusões. Em nenhum momento o comediante contestou seu conteúdo –apenas afirmou ter uma interpretação diferente dos fatos. Agora, fosse o relato absolutamente falso, ele também poderia ter atingido milhões de pessoas. Poderia ter sido feito por uma mulher em seu perfil pessoal, difundido para amigos e família dessa mulher, e viralizado a partir daí –sem que veículos jornalísticos que porventura viessem a apurar os fatos tivessem qualquer possibilidade de disputar espaço na timeline, graças ao novo algoritmo de Mark. Esse não é um problema do feminismo. Exigir que qualquer movimento de massas só tenha entre seus membros pessoas virtuosas e absolutamente sinceras é insano. Esse é um problema do Facebook.

O que campanhas como a #metoo ou #meuprimeiroassedio fizeram foi dar a mulheres a possibilidade de conhecer e reconhecer as dores umas das outras, acolher essas dores, e começar a articular respostas coletivas para que elas não se repitam.

Para acolher não é preciso provas. Empatia basta. Empatia, e um algoritmo que não nos leve a confundir escuta e punição. O problema, se ele existe, não está na conversa proposta, mas no ambiente no qual estamos conversando e na falta absoluta de controle democrático sobre suas regras.

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