É crítico da Folha e autor de cinco livros, entre eles "Pavões Misteriosos - 1974-1983: a explosão da música pop no Brasil" (Editora Três Estrelas). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.
Com escracho coletivo, apresentador anarquizou o showbiz
Qualquer um que trabalhe em TV –especialmente ao vivo– pode dizer como é difícil criar um programa que pareça anárquico e descontraído. Caos sem disciplina não funciona, assim como loucura sem método. E poucos programas foram tão geniais em sua aparente insanidade quanto os apresentados por José Abelardo Barbosa.
Que Chacrinha inventou uma maneira diferente de fazer TV não se discute. O mistério é se ele criou essa fórmula instintivamente ou se foi resultado de um longo processo de tentativa e erro.
O fato é que Chacrinha subverteu os clichês do programa de auditório". Em primeiro lugar, não tratava público e calouros com deferência e cordialidade, mas escracho: pedaços de bacalhau eram atirados na plateia, câmeras davam closes nas mulheres mais feias da plateia e cantores péssimos eram humilhados com buzinadas na cara.
Nem os artistas eram poupados: ninguém esquece Chacrinha perguntando "Quem quer ver a mandioca da Maria Bethânia?" ou apresentando o anão Nelson Ned como "o maior cantor do Brasil".
Nenhum artista gosta de ir a um programa para ser esculhambado, mas abriam exceção para Chacrinha porque sabiam que aquilo não deveria ser levado a sério.
Era um universo paralelo, onde todos se uniam num imenso escracho coletivo. O apresentador se vestia como um fugitivo de hospício, tinha voz engraçada e um nome que era sinônimo de bagunça. Não era um programa normal.
O que não quer dizer que fosse um programa qualquer. O show tinha ritmo acelerado e uma atmosfera carnavalesca. A câmera sempre mostrava algo inusitado ou divertido: a expressão de tédio de um jurado, um calouro empunhando o "Troféu Abacaxi" ou uma fã mandando beijos para algum cantor-galã.
Havia, claro, as chacretes, a cereja nesse bolo tropicalista. E Chacrinha teve a esperteza de dar a cada uma delas uma personalidade própria.
As chacretes não eram só mulheres gostosas mostrando coxas, bundas e decotes, mas personagens. E enquanto as fãs se esgoelavam no auditório por José Augusto, Wando ou Sidney Magal, os marmanjos debatiam preferências por Rita Cadillac, Índia Potira ou Sarita Catatau.
Tudo isso fazia parte do universo criado por Abelardo Barbosa. Diferentemente de seus concorrentes, como Silvio Santos e Flávio Cavalcanti, ele se escondia num personagem fictício, o que lhe dava ainda mais liberdade.
O humor brasileiro sempre teve personagens satíricos que parodiavam estereótipos do entretenimento, especialmente do showbiz americano.
Figuras como Zé Bonitinho, que galanteava moças num inglês inventado, ou Grande Otelo e Oscarito vestidos de caubói na chanchada "Matar ou Correr", eram vinganças terceiro-mundistas.
Chacrinha, a seu modo, também fez isso, anarquizando uma verdadeira instituição anglófila, o "variety show" televisivo. Na teoria, fazia o mesmo que Ed Sullivan: apresentava números musicais num programa de auditório. Mas alguém imagina Sullivan perguntando à plateia se queria ver a mandioca dos Beatles?
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