É professora do departamento de sociologia da USP e presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Escreve aos domingos, mensalmente.
Sociedade não está desmobilizada, mas pautas migraram do macro ao micro
Danilo Verpa - 26.mar/Folhapress | ||
Protesto dos grupos MBL e Vem Pra Rua na av. Paulista |
Nesta virada de mês, um galã pediu desculpas, o aniversário de um golpe de Estado passou quase em branco e protestos dos dois lados do espectro ideológico malograram em lotar as ruas. A segunda constatação tem a ver com a terceira, e ambas esclarecem o sentido da primeira.
Comecemos pelo meio. A Revolução Democrática de 31 de março de 1964, na nomeação do blog Verdade Sufocada, foi golpe de verdade, principiado no Dia da Mentira. A orquestra das redes sociais, embalada por batuque de panelas, prometia vistoso festejo para seus 53 anos, em memória do finado regime militar ou por sua ressurreição. A esperança vinha da juventude de muitos convidados, nem nascidos quando da "revolução", e do retorno de seu ideário –tradição, pátria, família– aos cartazes das manifestações de rua.
O bolo ficou por conta do general Clovis Purper Bandeira, editor de opinião da página do Clube Militar, que escreveu: "A gravidade da situação, em muitos aspectos, lembra 64". Lembrança ambicionando reencarnação, dadas "as pressões" de grupos "expressivos e atuantes clamando pela intervenção militar". O Exército aguarda nos quartéis, fiel aos "princípios institucionais e constitucionais. E eles ainda vigem no país". Mesmo porque, se o governo quebrar a Constituição, justificará a insubordinação militar. Assim o esclarece citação de Rui Barbosa, aquele que mandou escrúpulos liberais às favas ao sustentar o golpe de 1889.
Uma "revolução", no entanto, precisa de mais que armas e ideólogos. Precisa de povo. Faltou combinar com ele a festa. O aniversário passou meio despercebido, sem movimentação de rua ou tropas, sem pronunciamentos ou conclamações na imprensa. Quando mencionada, a data atendeu pelo substantivo "golpe".
Até a GloboNews fechou seu "Jornal das Dez" com imagens da resistência, ao som de Geraldo Vandré. A opção autoritária povoa uns tantos corações e mentes, não traz a multidão para a rua.
Isso leva ao terceiro assunto, a força decrescente dos protestos. Os movimentos #ForaDilma e #NãoVaiTerGolpe dividiram o país entre os pró e os anti-impeachment. Mas o golpe de 2016 já reside lá onde habita o de 1964, no passado. A crise, é seu costume, acelera o tempo.
Desde a saída de Dilma, o mundo já virou várias vezes de ponta-cabeça, passando da ameaça de enjaular seu padrinho à prisão de seu algoz-mor, da ascensão de um juiz à morte de outro. No meio do caminho, o processo político deslocou seu centro nervoso das ruas para as instituições.
Grupos na linha de frente do Fora Dilma, a exemplo do MBL e do Vem Pra Rua, ganharam endosso. Mas o campo inteiro perdeu perímetro e, como em casa que falta pão, todos brigam entre si ao vivo e também na internet. O ato na avenida Paulista, em 26 de março, atesta: cada grupo dirigiu seu carro de som, levou ídolos próprios e balançou bandeiras distintas. Ainda vão juntos, mas já não ficam misturados. Parte deles cobiça ingresso para o circo que antes insultava, o do sistema político.
Se esse lado se dividiu, o outro sofre deserção de grupos autonomistas, enquanto sindicatos e movimentos socialistas recobraram o controle perdido no longínquo 2013. O que mais se avista nos eventos Fora Temer são os balões da CUT e as faixas de Boulos.
Também aí a sangria desatou. A agenda em reação às reformas trabalhista e da Previdência não inflou manifestações. Neste campo, igualmente, o olho se encomprida para a cena eleitoral. Candidato ou não, Lula está de volta ao ofício em que é "hors concours": articular movimentos e partido.
Nos dois campos, a mobilização amainou. As ruas voltaram à ocupação usual nas democracias, com protestos pequenos e médios, temáticas distintas e baixo impacto nas instituições políticas.
Isso significa desmobilização da sociedade? Longe disso. O foco é que trafegou do macro para o micro. Proliferam nichos miúdos de contestação. Quando está em jogo a saída de um presidente, pautas específicas ficam abafadas.
Nem por isso são menos importantes. A mobilização se volta para elas agora. Um exemplo foi a revolta de funcionárias da TV Globo contra o ator José Mayer, que se esquivou, para depois admitir o papel de machão assediador. Outro foi a manifestação de rechaço ao porta-voz da família e das armas, o deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ), não por acaso filhote de 64.
Protestos são da natureza da democracia. O que não cabe nela são barbaridades como as que este deputado proferiu quando a Hebraica carioca franqueou-lhe seu microfone.
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