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antonio prata

 

05/09/2012 - 03h00

Papel higiênico rosa

Semana passada, quando o explosivo conluio entre uma moqueca baiana e uma ressaca homérica me levou, às pressas, a buscar asilo no banheiro de um boteco, dei-me conta de uma discreta, porém fundamental, mudança na cenografia do cotidiano: o papel higiênico rosa não existe mais. Sem alarde, sem choro nem vela nem fita amarela, os purpúreos rolos, outrora onipresentes em pés sujos, postos de gasolina e outras desprivilegiadas privadas públicas deste Brasil, deixaram a vida para entrar na história.

Diante de tal constatação, não pude evitar que um sorriso despontasse em meu rosto. Senti que o papel higiênico rosa era uma daquelas aberrações do século 20 felizmente extintas, como a palmatória, o CFC, os polichinelos nas aulas de educação física. Que pereça na vala comum do passado, pensei, e que de lá só saia em pesadelos, quando o inconsciente, com suas razões que a própria razão desconhece, vier esfregá-lo novamente em nossas fuças --ou em recantos menos nobres da epiderme.

Minha alegria, contudo, não durou muito tempo. Esvaiu-se assim que olhei para o lado e lembrei a que fomos condenados após o declínio daquele desprezado produto da celulose: aos rolões ou aos guardanapinhos. É como se tivéssemos derrubado um caudilho de república das bananas para cair na Guerra Fria, com duas potências dividindo o mundo e impondo a nós suas autocráticas vontades.

Comecemos pelos rolões. A sensação de abundância trazida pela visão da bojuda caixa de plástico desaparece no momento em que o cidadão tenta extrair dela o quinhão que lhe convém daqueles quilômetros de papel higiênico. Pois algum infeliz decidiu, depois de mais de um século de bem-sucedida extração frontal, que o papel agora sai paralelamente ao --digamos assim-- usuário, que precisa contorcer-se para puxá-lo. Não satisfeito, o mesmo gênio, pai da "extração paralela", cometeu um grosseiro erro de cálculo. Há uma equação inviável entre a espessura do papel e o peso do rolo: mal você puxa aquela diáfana lingueta, ela se rompe. Por minutos a fio você fica ali, tentando devagarinho, tentando pequenos trancos, tenta até enfiar a mão dentro da caixa de plástico para ajudar no movimento, mas é em vão: o papel rasga em vários pedacinhos e só resta a você fazer um bolinho com aqueles trapos, um amontoado mais troncho que dinheiro de bêbado.

O mesmo problema, é verdade, não ocorre com os tais "guardanapinhos", pois eles sequer te dão a esperança de conseguir um comprimento decente: já saem da caixa vertical previamente cortados, com as dimensões perfeitas para a higiene --de gnomos, de duendes, de hobbits; não de seres humanos. É revoltante.

O rolão é uma ditadura stalinista, um estado imenso cuja máquina existe mais para a autopreservação do que para o bem do cidadão. Os guardanapinhos são o capitalismo selvagem, em que foi tirado do indivíduo e dado ao mercado uma das escolhas mais básicas da vida: o tamanho do papel higiênico que lhe convém na mais íntima das solidões.

O papel higiênico rosa podia ser feio, meus amigos, podia ser rude e agressivo, mas funcionava. Éramos felizes e não sabíamos. Éramos livres e não sabíamos. Saudades do papel higiênico rosa.

antonioprata.folha@uol.com.br
@antonioprata

antonio prata

Antonio Prata é escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda' (editora 34). Escreve aos domingos.

 

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