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antonio prata

 

21/11/2012 - 03h00

Debaixo de nossos narizes

Não sei se é consequência do aquecimento global ou sinal da aridez contemporânea --deste mundo tão competitivo em que até o mais reles assistente de almoxarifado busca ajuda em tratados de guerra, em workshops com ironmen e cursos de reciclagem com sobreviventes de hecatombes--, mas a julgar pelo que está acontecendo com os desodorantes, nunca suou-se tanto sobre a face da Terra.

Faz bem pouco tempo, os antiperspirantes eram uma raridade. Uma espécie de tarja preta a que você recorria numa emergência -um primeiro encontro, uma fala em público, uma negociação salarial. Rapidamente, contudo, com suas armaduras metálicas (espécies de SUVs da higiene), foram tomando o espaço das ingênuas bisnaguinhas de plástico, hoje só encontráveis nas prateleiras mais baixas de farmácias de bairro e mercearias mixurucas, estabelecimentos aparentemente desconectados da grande guerra que está sendo travada diuturnamente nas metrópoles do globo e em nossas axilas: a guerra contra a sudorese.

Ainda lembro do dia, não muito distante, em que vi o primeiro frasco oferecendo "24 horas de proteção". Eu, que sou um ingênuo, achei que fosse um exagero semântico: a gente não passa mais do que umas 16 horas acordado, quem precisa de 24 sem transpirar? Talvez, se você tivesse um encontro de noite, dormisse na casa da moça, saísse sem tomar banho, encarasse uma negociação salarial, ralasse o dia todo e, à tarde, ainda desse uma palestra, poderia ser útil. Mas será que o pessoal por aí estava com uma vida tão animada? Verdadeiros triatletas do trabalho, do sexo e da vida social, buscando gabaritar o Zeitgeist sem derramar uma única gota? Aparentemente, sim, pois não bastassem as 24 horas de proteção, agora surgiram produtos oferecendo o nocaute de nossas glândulas sudoríficas por 48 e até, olhe só, 72 horas.

Meus caros, sejamos francos: três dias confiando na mesma espreiada são, evidentemente, três dias sem tomar banho. Só imagino pessoas longe do chuveiro por tanto tempo se estiverem presas nos escombros, depois de um terremoto, participando do Paris-Dakar ou perdidas na selva. E suspeito que quem se encontre nessas situações terá preocupações mais urgentes do que, digamos, a qualidade de seu cecê.

Veja, não quero fazer o papel do hippie natureba, defender o futum contra o capitalismo. Sou filho de minha época --e, devo dizer, um filho bem asseado--, concordo que o direito do sovaco de um vai só até onde começa a narina do outro, mas me parece haver algo de desequilibrado nessa obsessão antiperspirante. Algo daquilo que Nietzsche --perdão, Friedrich, por evocar seu nome numa mera crônica sobre desodorantes...-- chamou de "horror ao humano", negação de tudo o que nos lembra de nossa origem animal, de nossa concretude corpórea.

Que ridículos somos: novos ricos da natureza, tentando disfarçar nossas origens para esquecer de nosso destino. Realmente acreditamos que aparando os pelos, branqueando os dentes e inibindo os odores conseguiremos fugir da verdade, a única verdade que, desde que saímos do útero, está aí, bem debaixo de nossos narizes.

antonioprata.folha@uol.com.br
@antonioprata

antonio prata

Antonio Prata é escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda' (editora 34). Escreve aos domingos.

 

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