Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Garagem

DE SÃO PAULO

Acordar é uma pequena tragédia. Seja cutucado pela luz, seja estapeado pelo despertador, sempre abro os olhos com um profundo sentimento de injustiça: por que já?! Por que eu?! Tende piedade, Senhor, dai-me mais cinco minutinhos –e abençoai, se tiverdes tempo, o inventor da "função soneca".

Quando eu era adolescente, pensava que o problema fosse a escola. Afinal, quem quer sair da cama às 6h da madrugada pra estudar adjuntos adnominais e alcalino-terrosos? (Melhor ficar adjunto do travesseiro, como que embalado por alcaloides-celestiais.)

Anos mais tarde, já livre da gramática e da tabela periódica, passei a acreditar que o sofrimento viesse dos freelas chatos a que eu tinha que me dedicar logo depois do café: a matéria "10 programas nota 10 neste Dia da Criança", pra revista "Kids"; um capítulo sobre sustentabilidade na produção de celulose pro livro comemorativo de 20 anos de uma fábrica de guardanapos; a revisão dos textos publicitários a serem estampados sobre a imagem de crianças loiras correndo num parque, no fundo de uma caixa de cereais –"Funflakes é pura diversão!".

Agora, virando de um lado pro outro na cama, dividido entre a preguiça e a culpa, tento amaldiçoar alguma tarefa enfadonha que supostamente me aguarda na primeira esquina depois da escova de dentes, mas não encontro nada horroroso por lá. Hoje é quinta, dia de começar a crônica. Gosto de escrever a crônica. Da sala, vêm os gritinhos da minha filha. Tenho saúde, amor, amigos, uma churrasqueira e, além de tudo, faz sol lá fora, esse sol da primavera que não está aí para solapar ninguém, mas para deixar o céu mais azul e a grama mais verde, como no parque em que corriam as crianças loiras, na caixa de "Funflakes". Acordar, no entanto, não é "pura diversão!". Acordar continua sendo uma pequena tragédia.

Sei que reclamo de barriga cheia. 99% das pessoas despertam pra vidas bem piores do que a minha. Passam os dias a apertar parafusos, cruzam montanhas atrás de água, fogem de balas e leões. Um terremoto na Conchinchina, contudo, não nos impede de reclamar da nossa dor de dente. Acordar é a minha dor de dente.

Olha, eu não faço o tipo blasé, que se arrasta por aí com a cabeça baixa e um olhar superior, como se a inteligência levasse inevitavelmente ao niilismo e o comentário mais sagaz sobre a existência fosse o bocejo. Desconfio desses tipos, aliás: acho que o que move essas casmurrices é muito menos um arraigado desencanto do que um apurado senso estético. "um homem com uma dor", escreveu Leminski, "é muito mais elegante/ caminha assim de lado/ como se chegando atrasado/ andasse mais adiante". Não, não faço esse tipo. Uma vez acordado e de banho tomado, existir me parece um programa bem razoável. O meu problema não é no carburador, é no motor de arranque.

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