Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Meditação e foco no macarrão

Crédito: Adams Carvalho/Folhapress

"Sente os pés no chão", diz a instrutora, com a voz serena de quem há décadas deve sentir os pés no chão, "sente a respiração. Inspira. Expira", mas eu não consigo sentir os pés no chão nem a respiração, só um certo incômodo por estar ali de olhos fechados no décimo segundo andar de um prédio entre milhares de outros prédios na cidade de São Paulo, sentado em círculo junto a meia dúzia de pessoas de olhos fechados que também tentam sentir os pés no chão e a respiração. Há um quê de fracasso em estar ali, um fracasso coletivo, da espécie: a humanidade de segunda época, após ter sido reprovada no curso "Existir".

"Inspira, expira", ela diz, mas o narrador dentro da minha cabeça fala mais alto: "Eis então que no início do terceiro milênio, tendo chegado à Lua e à engenharia genética, os seres humanos se voltavam ávidos a técnicas milenares de relaxamento na esperança de encontrar alguma paz e algum sentido para suas vidas simultaneamente atribuladas e vazias".

Um lagarto, penso, jamais faria um curso de meditação. "Sente a pedra. A barriga na pedra. Relaxa a cauda. Agora sente o sol aquecendo as escamas. Esquece as moscas. Esquece as cobras rondando a toca. Inspira. Expira." Eu imagino que o lagarto sinta a pedra. A barriga na pedra. O prazer simples e ancestral de lagartear sob o sol.

Se o lagarto consegue esquecer as moscas ou a cobra rondando a toca, já não sei. A parte mais interna e mais antiga do nosso cérebro é igual a dos répteis. É dali que vem o medo, ferramenta evolutiva fundamental para trazer nossos genes triunfantes e nossos cérebros aflitos através dos milênios até aquela roda, no décimo segundo andar de um prédio na cidade de São Paulo, tentando aprender a sentir o pé no chão, a prestar atenção na respiração, a esquecer as moscas e as cobras que rondam nossas tocas.

Não há nada de místico na meditação. Pelo contrário. Meditar é aprender a estar aqui, agora. Eu acho que nunca estive aqui, agora. (Viagem de ácido não conta). O ansioso está sempre em outro lugar. Sempre pré-ocupado. Às vezes acho que nasci meia hora atrasado e nunca recuperei esses trinta minutos. "Inspira. Expira".

Não é um problema só meu. A revista dominical do "New York Times" fez uma matéria de capa ano passado sobre o tema. Dizia que vivemos a era da ansiedade. Todas as redes sociais são latifúndios produzindo ansiedade. Giramos as timelines à procura do pote de ouro no fim do arco-íris, mas –spoiler alert!– o time-arco-line-íris não tem fim. Abrimos as caixinhas de mensagem como crianças atrás de biscoitos e sofremos quando não há biscoitos –num mundo real e cheio de biscoitos. Antas! Mesmo o presente mais palpável, como um prato fumegante de macarrão, nós conseguimos digitalizar e transformar em ansiedade. Eu preciso postar a minha selfie dando a primeira garfada neste macarrão, depois nem vou conseguir comer o resto do macarrão, ou sentir o gosto do macarrão, porque estarei ocupado conferindo quantas pessoas estão dando likes e comentando a minha foto comendo o macarrão que esfria à minha frente.

"Inspira, expira". A voz da instrutora é tão calma e segura que me dá a certeza de que ela consegue comer o macarrão e me dá a esperança de que também eu, um dia, aprenderei a comer o macarrão. É só o que eu peço a cinco mil anos de tradição acumulada por monges e budas e maharishis e demais sábios barbudos ou imberbes do longínquo Oriente. "Inspira. Expira". Foco no macarrão.

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