Romancista, autor de "Nove Noites" e "Reprodução", já foi jornalista da Folha. Escreve aos domingos, mensalmente.
A compreensão do mundo se reduziu a uma representação mais direta
Divulgação | ||
"A Regra do Jogo", peça de Christiane Jatahy, na Comédie Française |
"A Regra do Jogo", de Jean Renoir, já era um filme deliberadamente anacrônico na estreia, em 1939, às vésperas da Segunda Guerra. "Uma maneira de interpretar o estado de espírito daquele momento era justamente não falar da situação e contar uma história leve. Inspirei-me em Beaumarchais e Marivaux, nos autores clássicos, na comédia", esclareceu o cineasta quando o filme foi redescoberto, depois da guerra. A declaração está no programa da adaptação teatral que a carioca Christiane Jatahy dirige para a Comédie Française, em cartaz em Paris.
Rejeitado na estreia (pelo visto, ninguém percebeu o que ele anunciava) e destruído nos bombardeios de 1942, o filme só passou a ser interpretado como prognóstico depois da guerra e graças a ela, retrospectivamente, quando foi reconstituído e ressurgiu em nova versão, consagrando-se como obra-prima no final dos anos 1950. Uma nota acrescentada aos créditos alerta, não sem alguma ironia, contra as associações fáceis: "Este divertimento, cuja ação se situa às vésperas da guerra de 1939, não tem a pretensão de ser um estudo de costumes. Seus personagens são puramente imaginários".
Se, mesmo depois da guerra, Renoir continuava resistindo à facilidade de fazer de seu filme, a posteriori, um arauto e uma parábola dos maus tempos, como ver uma adaptação teatral que aproveita a oportunidade dos tempos sombrios em curso para reencenar "A Regra do Jogo" com a mística do prognóstico? Seria interessante saber o que mudou entre o filme e sua adaptação teatral, senão no mundo, pelo menos na ideia de representação do mundo.
O filme de Renoir é atravessado por uma leveza ao mesmo tempo cômica, absurda e inconsequente, cujo travo vai sendo postergado até o final. São as maneiras de uma civilização e de um grau de liberdade que ali chegam ao paroxismo. Os personagens reunidos num castelo correm uns atrás dos outros, guiados pelo desejo nem sempre correspondido. O racismo não distingue classes. O antissemitismo se manifesta entre os empregados. A morte ronda, mas sua representação alusiva comporta uma graça comum aos desencontros amorosos: são esqueletos e fantasmas num teatrinho montado para a diversão dos convidados, sob os tiros das caçadas ao fundo.
Na peça, parte dessa ambiguidade submerge à maré sinistra do momento. A tensão está presente desde o início. Todos sabemos o que ali está sendo anunciado. A alegria é de fachada. O desejo é histeria e desespero. A diretora escolheu uma atriz de origem argelina para interpretar a anfitriã que no filme é vivida por uma austríaca. "Como a Christine de Renoir, a minha carrega a suspeita de uma suposta ameaça estrangeira contra a qual as pessoas acham que devem se armar, às vésperas de uma guerra iminente", diz Jatahy no programa da peça.
Além da representação do estrangeiro, com menção a imigrantes e refugiados, dois outros elementos são especialmente significativos nessa atualização teatral: os autômatos musicais que no filme eram o hobby do anfitrião foram substituídos por câmeras de vídeo (o anfitrião grava tudo e todos), e a caçada –agora, em vez de coelhos e faisões, as presas são mulheres vestidas de coelhinhas.
As coisas ficaram mais diretas, para dizer o mínimo. Em vez da alusão do som de tiros distantes, o terror é a própria expressão aterrorizada no rosto em close da mulher vestida de coelho, diante do caçador que também é a câmera. É um achado da adaptação, que diz mais sobre os novos tempos do que qualquer outra coisa.
A exposição direta e a visibilidade total não são capazes de nos fazer compreender melhor o que se passa a nossa volta. Ao contrário, elas nos hipnotizam e paralisam, como as coelhinhas encurraladas. É o que fica claro na fixação do anfitrião em registrar tudo com sua câmera de vídeo. A compreensão do mundo se reduziu em favor de uma representação mais direta, imediata, automática e não reflexiva, com toda a perversão que isso pode acarretar.
A peça me fez lembrar um caso recente. Ao contrário da má-fé conservadora que atribuiu o sucesso de "Moonlight" à representação politicamente correta de negros e gays (à visibilidade das minorias), acredito que a grandeza do filme esteja antes na sua maestria autoral, no que ele tem de criação e invenção. Mas quando o diretor de "Moonlight", investido de heroísmo, diz ao público, durante a entrega do Oscar, que não o abandonará, que não deixará de representá-lo; quando promete representar todos os que serão rejeitados por Trump, os que não terão direito de representação sob o governo Trump, ele põe a arte a serviço da lógica da democracia representativa.
É tanto mais normal que isso ocorra quanto mais frágil, vulnerável e falha parecer a democracia como sistema de representação social. Nessa hora, talvez seja difícil não reduzir a representação artística a um substituto, ao grau zero da invenção e da reflexão, por boas intenções ou simples oportunismo. Mas nunca é demais lembrar que nenhum dos dois jamais serviu à boa arte.
Livraria da Folha
- Coleção "Cinema Policial" reúne quatro filmes de grandes diretores
- Sociólogo discute transformações do século 21 em "A Era do Imprevisto"
- Livro de escritora russa compila contos de fada assustadores; leia trecho
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade