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cláudia collucci

 

28/11/2012 - 03h00

Vivendo a morte

Há pouco mais de uma semana, o arquiteto Oscar Niemeyer iniciou um tratamento com hemodiálise para reabilitar o funcionamento dos rins. Aos 104 anos, ele está internado desde o último dia 2 no Rio, após sofrer uma hemorragia digestiva.

A adoção de um tratamento invasivo em um paciente centenário tem sido bastante questionada e levanta, de novo, a seguinte discussão: quais os limites dos procedimentos médicos a serem adotados no fim da vida?

Ainda que se leve em conta o fato de Niemeyer ser considerado o nosso "highlander" e já ter sobrevivido a episódios piores aos que levaram à última internação, o início da hemodiálise provocou burburinho no meio médico. "É um tratamento fútil, que só vai adiar um pouco a morte", disse, quase em coro, um grupo de médicos reunidos em um simpósio na semana passada.

Ninguém sabe ao certo o quão frágil está Niemeyer. Os boletins médicos dizem que ele se mantém lúcido. E se ele está lúcido, provavelmente tenha concordado com a hemodiálise. E se concordou, ponto final. A vontade do paciente deve prevalecer sempre, como já determinou o Conselho Federal de Medicina em recente resolução.

De qualquer forma, a discussão é pertinente e muito atual. Cresce no país um movimento contrário aos chamados tratamentos "fúteis", que só aumentam e estendem o sofrimento, sem dar qualidade para a vida do paciente. São procedimentos como submeter alguém a uma cirurgia quando já não há chance de cura, ou ressuscitar quem está em estado terminal e teve parada cardíaca, ou ligar alguém a aparelhos quando tudo o que se conseguirá é uma existência vegetativa para a manutenção da vida, muitas vezes por meio de aparelhos e medicações.

O caso da apresentadora Hebe Camargo, morta em setembro após uma longa luta contra o câncer, é emblemático. Diante da piora do seu quadro de saúde, ela preferiu ficar em casa em vez de enfrentar uma nova internação e correr o risco de ser entubada caso sofresse uma parada cardíaca dentro do hospital.

CUIDADOS PALIATIVOS

Muito já se falou sobre os cuidados paliativos, mas ainda há quem resista a eles quando confrontado com uma situação pessoal ou familiar. A proposta dos cuidados paliativos é respeitar o tempo da pessoa morrer. Usar o conhecimento científico e também de outras áreas para que se possa viver da melhor maneira possível até o fim. Sem dor, sem sofrimento.

O fato é que ninguém quer pensar ou falar de morte, tema que se tornou um tabu na nossa sociedade, obcecada pela eterna juventude. A morte tem que ser escondida dentro dos hospitais, longe dos lares.

Os médicos, em geral, enxergam a morte como uma guerra a ser vencida, custe o que custar. O contrário disso, é manter o paciente vivo, custe o que custar. A maioria de nós pensamos assim. E delegamos aos médicos a decisão sobre o que fazer com as nossas vidas quando estamos próximos do fim. A morte nos aterroriza e simplesmente não queremos pensar e nem falar sobre ela. É como se o silêncio nos conferisse alguma espécie de proteção. Ledo engano.

Como diz a médica Maria Goretti, uma das maiores especialistas brasileiras em cuidados paliativos, falar sobre a morte é falar sobre a vida que desejamos ter até o fim. E não precisamos esperar por uma doença grave e incurável ou pelo fim da vida para tomar decisões importantes. Qualquer um de nós pode, por exemplo, escrever e registrar em cartório um "testamento vital", documento no qual determinamos o que permitimos e o que não permitimos no caso de sermos levados a um hospital em uma situação grave.

Recentemente, pensei muito sobre isso ao saber da morte de uma tia muito querida, consumida pelo câncer. Sempre muito independente, ela sabia da gravidade do seu estado de saúde e delegou ao médico a decisão sobre o tratamento. Aos 78 anos e com metástase em vários órgãos, foi submetida a duas sessões cavalares de quimioterapia, que lhe provocaram vários efeitos colaterais, entre eles enjoos insuportáveis e dores por todo o corpo.

Com o rápido definhamento, o médico decidiu interná-la. Uma semana depois, na véspera da sua morte, ela pediu para ir para casa. O médico não autorizou porque seu estado de saúde havia se agravado. Horas depois, ela foi sedada e, em seguida, sofreu uma parada cardíaca. Ainda tentaram reanimá-la, em vão, com desfibrilador. Fiquei pensando que essa mulher, sempre tão cheia de vida, merecia ter vivido a sua própria morte com mais dignidade. Mas, provavelmente, o hospital do interior onde ela foi tratada desconhece os conceitos de cuidados paliativos.

Encerro essa discussão com o trecho de um ótimo artigo da jornalista e escritora Eliane Brum, que serve de reflexão para todos nós: "Não se iluda. Fugindo ou não dela, é a morte que dá sentido à vida. É diante da possibilidade do fim que criamos uma existência que valha a pena. Sem ela, deixaríamos tudo para um amanhã que nunca chegaria, presos a um presente tão repetitivo quanto infinito. Calar a morte é uma burrice, já que inútil, mas é principalmente a perda de uma grande oportunidade para viver uma vida mais viva."

cláudia collucci

Cláudia Collucci é repórter especial da Folha, especializada na área da saúde. Mestre em história da ciência pela PUC-SP e pós graduanda em gestão de saúde pela FGV-SP, foi bolsista da University of Michigan (2010) e da Georgetown University (2011), onde pesquisou sobre conflitos de interesse e o impacto das novas tecnologias em saúde. É autora dos livros 'Quero ser mãe' e 'Por que a gravidez não vem?" e coautora de 'Experimentos e Experimentações'. Escreve às terças.

 

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