Cláudia Collucci

Jornalista especializada em saúde, autora de “Quero ser mãe” e “Por que a gravidez não vem?”.

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Cláudia Collucci

Vi a fome na África, mas a surpresa foi reencontrá-la nos rincões de São Paulo

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Crédito: Feisal Omar/Reuters Mulheres somalis aguardam refeição em um campo de refugiados na capital Mogadício; a ONU declarou surto de fome crítica em duas regiões no sul do país e disse que, sem doações, a situação pode piorar. *** ORG XMIT: MSH05 Internally displaced Somali women wait at a camp in the capital Mogadishu, July 20, 2011. The United Nations on Wednesday declared famine in two regions of southern Somalia, and warned that this could spread further within two months in the war-ravaged Horn of Africa country unless donors step in. REUTERS/Feisal Omar (SOMALIA - Tags: CONFLICT DISASTER)

Fazia tempo que eu não via a fome de perto. Nos últimos meses de trabalho e turismo pela África, voltei a reencontrá-la em muitos rostos e corpos. Na mulher esquálida e tetraplégica sentada na calçada por onde eu passava diariamente, nos olhos do porteiro do prédio onde morei em Maputo, capital de Moçambique, ou ainda no lamento dos meninos que me abordavam nas ruas repetindo "tenho fome", "tenho fome".

Em Moçambique, 25% da população (7 milhões de pessoas) vivem com a fome à espreita. Não sabem quando terão a próxima refeição, nem como vão obtê-la. Quase 50% das crianças moçambicanas apresentam deficiências nutricionais. O pequeno Carlos, de cinco anos, pesa oito quilos, menos da metade do esperado para a sua idade. Ano passado, ficou internado por um mês em um hospital de Maputo para tratar uma anemia severa. A mãe, de 23 anos, tem outros cinco filhos e sobrevive vendendo bananas. O pouco dinheiro que consegue não é suficiente para comprar leite. O pai abandonou a família há um ano.

Na África, em vários momentos agradeci ao fato de a fome não estar mais no radar das preocupações da saúde pública no Brasil. Porém, ao retornar ao país às vésperas do Natal, surpreendi-me com o relançamento da campanha "Natal sem fome", promovida pela ONG Ação da Cidadania, que foi criada em 1993 pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho.

A campanha havia sido suspensa em 2007 em razão da diminuição da pobreza no país. Com o crescimento do desemprego e do subemprego e do corte de políticas sociais, ela voltou a ser necessária. A preocupação é que o Brasil retorne para o "Mapa da Fome" da FAO, Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura.

Segundo José Graziano da Silva, diretor-geral da FAO, se o Brasil não conseguir retomar o crescimento econômico, gerar empregos de qualidade e ter um programa de segurança alimentar voltado especificamente para as zonas mais problemáticas, poderemos voltar a fazer parte do Mapa da Fome, do qual saímos em 2014.

O alerta de Graziano não é exagerado. Conforme demonstrou a ótima e chocante reportagem da Folha, a falta de comida assombra os lares de muita gente nos rincões pobres de São Paulo. São pessoas que não sabem o que comerão no dia seguinte, o que inclui crianças sem café da manhã e que almoçam e jantam macarrão instantâneo, e pai, mãe e filhos que passam o dia à base de arroz. Segundo classificação do IBGE, elas se enquadram na chamada insegurança alimentar grave, cujo grau mais extremo é a fome.

A desnutrição é pano de fundo para uma série de doenças infecciosas que apresentam uma mortalidade maior. Por exemplo, uma pessoa desnutrida tem maior chance de morrer por pneumonia ou diarreia. Vejam o que anda acontecendo na Venezuela, onde crianças estão morrendo em razão da fome.

Ainda que a fome continue amedrontando, é o outro lado da moeda nutricional (sobrepeso e a obesidade) o que mais preocupa hoje. Mais da metade (53,9%) da população brasileira ultrapassa o peso ideal. Essa condição a predispõe a disfunções crônicas como câncer, hipertensão e diabetes e, em consequência, à morte prematura por doenças cardiovasculares.

Mesmo na África o sobrepeso e a obesidade já são causa de preocupação. No mundo há 41 milhões de crianças acima do peso, e um quarto delas são africanas, segundo a OMS. No continente, o número de crianças com peso a mais praticamente duplicou entre 1990 e 2014, passando de 5,4 para 10,3 milhões.

O impacto combinado da desnutrição e do sobrepeso/obesidade, também conhecido como "a carga dupla da má nutrição", traz impactos significativos e negativos nas taxas de doenças e mortalidade, nos resultados educacionais e na produtividade. Portanto, gera graves consequências econômicas para indivíduos, comunidades e nações, segundo relatório do Programa Mundial de Alimentos (PMA) e pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal).

De acordo com o relatório, na última década muitos países de renda média fizeram grandes avanços na redução da desnutrição, mas agora já se observa uma tendência preocupante entre as comunidades vulneráveis: casos de desnutrição e sobrepeso simultaneamente nas mesmas famílias.

Enquanto a desnutrição afeta o crescimento físico e prejudica o desenvolvimento do cérebro, o sobrepeso e a obesidade podem levar a doenças não transmissíveis, como as já mencionadas mais acima. Ambos impedem o desenvolvimento dos indivíduos, o bem-estar das comunidades e o objetivo de alcançar a Fome Zero até o ano de 2030.

Esse será um principais desafios em saúde pública para os próximos anos. Exigirá políticas públicas consistentes, além de cobrança e vigilância da sociedade civil. Atitudes, aliás, que parecem fora de moda em tempos de tantas tretas vazias nas redes sociais.

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