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clóvis rossi

 

03/08/2012 - 12h00

Prefiro Coca-Cola a cocaína

O capitalismo cabe numa garrafa, desde que seja de Coca-Cola. É pelo menos o que parece pensar o chanceler boliviano, David Choquehuanca, ao anunciar para o dia 21 de dezembro o fim do consumo do refrigerante em seu país:

A decisão "estará em sintonia com o fim do calendário maia e será parte dos festejos para celebrar o fim do capitalismo e o começo da cultura da vida", proclamou, radiante.

Que beleza, como diria esse notável locutor esportivo que é Milton Leite (Sportv). Se fosse tão fácil assim, até eu me alistaria para engarrafar o capitalismo e jogá-lo fora, embora não faça a mais remota ideia do que colocaria no lugar.

Confesso que tenho uma certa simpatia, com mil e uma ressalvas, pelo projeto indigenista do presidente Evo Morales. Não que chegue perto do que pensa Luiz Carlos Bresser Pereira, colega de coluna na Folha e um analista de que gosto muito. Não faz muito, Bresser escreveu estar convencido "de que há um pequeno e admirável herói na política mundial: o presidente da Bolívia, Evo Morales. Não estou seguro de que ele terá êxito em sua missão --a de criar uma democracia social na Bolívia-- porque é muito difícil governar democraticamente países pobres e, ainda por cima, divididos em termos étnicos --e aquele país sofre dos dois males".

Como não sou chegado a heróis, minha simpatia é bem menos entusiasmada e se deve a uma lógica simples, talvez simplória: a Bolívia é formada majoritariamente por indígenas. Logo, seria natural, numa democracia, que as maiorias governem, o que, no entanto, jamais aconteceu na Bolívia até a eleição de Evo Morales em 2005.

Minha principal dúvida é saber se é possível levar a Bolívia de volta para os tempos pré-Cristóvão Colombo e adotar as regras e o modo de vida dos indígenas que a habitavam antes da chegada dos brancos.

Não me parece possível, mas acho que Evo e sua turma têm todo o direito de tentar, ainda mais que avalizados pelos resultados eleitorais.

O problema é que esse direito fica embaçado quando se recorre ao misticismo, como o faz Choquehuanca, e se idealiza o passado. Suponho que os indígenas praticavam, de fato, uma "cultura da vida" com o meio ambiente, mas não necessariamente entre eles.

Para o chanceler, o dia do fim da Coca-Cola é também "o fim do egoísmo, da divisão" e o "21 de dezembro tem que ser o fim da Coca-Cola, e o começo do 'mocochinche' (refresco de pêssego). Os planetas se alinham depois de 26.000 anos", festejou, com o que transforma a data em muito importante não só para a Bolívia mas para o planeta.

Respeito todas as crenças, mesmo aquelas que me parecem ridículas, mas não custa lembrar que milenarismos desse tipo geralmente terminam mal, para seus próprios adeptos e também para os descrentes.

Suspeito que o governo boliviano faria melhor se, em vez de se preocupar com a Coca-Cola, se preocupasse com a cocaína. Não com a folha de coca, que tem efeitos terapêuticos, é um dado cultural dos indígenas e mitiga a fome dos povos andinos quando mascada. O problema é o produto processado, que é hoje um negócio tão ou mais capitalista que a Coca-Cola. E mata, ao contrário do que acontece com o refrigerante.

clóvis rossi

Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. É autor de obras como 'Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo' e 'O Que é Jornalismo'. Escreve às terças, quintas, sextas e domingos.

 

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