É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.
A democracia está em dívida
Durante a campanha eleitoral de 1983 na Argentina, a que formalizaria o fim de uma das mais nefandas ditaduras da história, Raúl Alfonsín, o candidato que se elegeria, baseava sua propaganda naquilo que a democracia seria capaz de oferecer: comer mais, ter uma educação e um sistema de saúde melhores e assim por diante.
Acreditei, por mais que já tivesse idade (40 anos à época) para ser cético com tudo e todos. Afinal, parecia lógico, e saudável, que a democracia oferecesse também uma vida melhor, além de vantagens intrínsecas (liberdades públicas, respeito aos direitos humanos etc.).
Continuo acreditando, mas sou obrigado a reconhecer que as promessas de Alfonsín não se cumpriram, do que dão a prova mais recente os saques desta semana.
Aliás, no Brasil também o retorno à democracia esteve longe de ser um piquenique no bosque. Foi preciso esperar dez anos para que o Plano Real estabilizasse a economia e permitisse o início de um ciclo virtuoso em que, de fato, quase tudo está melhor.
Não obstante, a satisfação com a democracia é bem maior na tumultuada Argentina de hoje do que no mais estável Brasil.
Aqui, é importante introduzir um matiz relevante: não é que brasileiros e argentinos (ou demais latino-americanos) sintam saudades das ditaduras. Ao contrário: o mais recente Latinobarômetro, o melhor termômetro sobre o estado de espírito dos habitantes do subcontinente em relação às suas instituições, mostra que apenas 19% dos brasileiros e 15% dos argentinos acham que, "em determinadas circunstâncias, um governo autoritário pode ser melhor que um democrático".
A democracia, portanto, é um valor inobjetável. O problema é a maneira como ela anda funcionando nos nossos tristes trópicos --e aqui entra-se em um aparente paradoxo: só pouco mais de 20% dos brasileiros estão satisfeitos com o funcionamento da democracia, enquanto 50% dos argentinos aprovam a sua, embora o quadro geral no Brasil pareça bem mais favorável do que o da Argentina.
É evidente que a democracia está em dívida com parcelas substanciais de brasileiros, argentinos e latino-americanos em geral (apenas 40% se dizem satisfeitos com ela, na média do subcontinente).
O problema parece ser a distância que se foi cavando (ou sempre existiu?) entre governantes e governados: a grande maioria dos brasileiros (mais de 80%), dos argentinos (pouco menos de 80%) e dos latino-americanos (70% na média geral) dizem não acreditar que seus respectivos países sejam governados em benefício da maioria.
Em outra era, essa situação fatalmente levaria a que os marginalizados do poder batessem às portas dos quartéis. Como os regimes militares decorrentes desses apelos espúrios foram um fracasso não só do ponto de vista econômico-social, mas também, como é óbvio, em direitos humanos, golpes militares caíram de moda.
A democracia parece um modelo indiscutível. Mas é preciso que ela vá pagando sua dívida, sob pena de as turbulências ganharem não mais os quartéis, mas as ruas.
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