É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.
O último estertor do império
Para entender a invasão da Ucrânia pela Rússia é indispensável comparar o mapa da Europa até o desaparecimento da União Soviética com o atual.
Enquanto havia o Pacto de Varsóvia –a aliança militar dos países comunistas–, as fronteiras soviéticas avançavam pela Europa e conformavam o ápice do império russo desde que ele começou a ser formado por Ivã, o Terrível, czar da Rússia desde 1547 até 1584.
Agora, a Ucrânia é tudo o que a Rússia pode ambicionar para manter uma influência na Europa e não se transformar em uma potência com projeção apenas asiática.
Escreve, por exemplo, Fred Kaplan, pesquisador do Council on Foreign Relations: "Putin vê a Ucrânia (como o faria qualquer líder russo) como um mercado vital, um fornecedor e, mais importante, um tampão contra o cerco ocidental".
Reforça, em artigo para "El País", Andrew Wilson, especialista em Ucrânia da Universidade de Londres e membro do Conselho Europeu de Relações Exteriores: "Sem a Ucrânia, o grandioso plano de Putin, a própria razão de seu terceiro mandato, a União Euroasiática, teria demasiados componentes asiáticos".
Estabelecido o ponto central da história, a questão seguinte é saber se a Rússia se contentará com a conquista da Crimeia, praticamente estabelecida ontem, ou se avançará para o resto da Ucrânia.
É claro que a ocupação da Crimeia viola a legalidade internacional, como gritam os países ocidentais, mas não é difícil para a Rússia alegar que não está invadindo nada. Estaria apenas garantindo a segurança dos russos que vivem na península (e, de quebra, de sua frota no Mar Negro).
Sessenta por cento dos habitantes da Crimeia se sentem russos e "têm direito a decidir seu destino", como disse Valentina Matviyenko, presidente do Senado russo. Afinal, o Ocidente aceitou que os habitantes de Kiev e de outras cidades de maioria ucraniana depusessem o governo que havia sido legitimamente eleito e reconheceu a nova situação.
Além do mais, é pouco o que o Ocidente pode fazer para forçar os russos a saírem da Crimeia.
Outra coisa é tentar eventualmente ocupar o restante da Ucrânia. Aí, o jogo muda. Embora um terço da população ucraniana fale russo, apenas 17% dela é de etnia russa.
Não dá, portanto, para replicar o argumento da Crimeia para o conjunto do país.
Além disso, as manifestações impressionantes em Kiev e outras cidades contra a inclinação russa do então presidente Viktor Yanukovich indicam claramente que a resistência a uma invasão russa seria tremenda. Ganhar a Ucrânia exigiria um banho de sangue que nem Vladimir Putin parece em condições de promover.
Há quem lembre que "a Rússia mostrou, uma e outra vez, que faz tudo o que puder em nome de suas autoproclamadas necessidades de segurança, até que encontre resistência significativa", como escreve Keir Giles, pesquisador associado do Programa Rússia e Eurásia da Chatam House, centro londrino de estudos.
A Crimeia, portanto, pode ser o último estertor de um império em decadência.
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