Clóvis Rossi

Repórter especial, foi membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

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Clóvis Rossi

O mulá e o diálogo póstumo

Se o líder do Taleban, Mohammed Omar, morreu em 2013, e se um texto atribuído a ele pelo grupo foi divulgado em meados de julho de 2015, defendendo negociações de paz, só se pode deduzir que o novo líder é favorável à paz e que, portanto, ela tem alguma chance de ser obtida, certo?

Não necessariamente.

Primeiro, o fato de a morte do líder ter sido mantida em sigilo durante dois anos indica que a coesão do Taleban dependia da suposição de que ele estivesse vivo.

"O mulá Omar era importante como cabeça simbólica do movimento", diz Roland Paris, professor associado de assuntos públicos e internacionais da Universidade de Ottawa.

Reforçam Paul McLeary e Adam Rawnsley, da revista "Foreign Policy": "Não é claro quanta influência exatamente o mulá Omar exercia sobre as atividades cotidianas do Taleban nos anos recentes, mas seu papel como figura unificadora de um grupo de facções em conflito é inegável".

A designação de Akhtar Mohammed Mansur como novo líder sugere, fortemente, que ele era o verdadeiro autor do texto atribuído ao dirigente já morto, defendendo a negociação.

Mas há sérias dúvidas sobre a capacidade de Mansur de levar seus seguidores à mesa do diálogo com o governo afegão (aliás, a segunda rodada de negociações, que deveria se dar nesta sexta-feira, 31, foi adiada exatamente pela incerteza gerada pelo anúncio da morte).

"A discórdia interna pode tornar difícil para o Taleban negociar com uma única voz, o que, por sua vez, reduz as perspectivas de acordo de paz abrangente", diz o professor Paris.

De fato, um texto postado –e depois deletado— no site do grupo criticava a negociação e dizia que os negociadores não representavam ninguém.

Agora que se sabe que eles não podiam representar o mulá Omar, que já estava morto, o questionamento só tende a aumentar.

McLeary e Rawnsley, os especialistas da "Foreign Policy", dizem que o grupo insurgente "sempre foi uma colcha de retalhos de pequenos grupelhos mantidos unidos em parte pela vontade e personalidade de Omar. Mas, em anos recentes, vimos também agudos desacordos entre aqueles que querem conversar com Cabul, aqueles que querem lutar e até aqueles inclinados a desertar para unir-se ao Estado Islâmico".

A revista "Economist", no número que está nas bancas, lembra uma deserção de peso, a de Gulbuddin Hikmatyar, um dos mais conhecidos líderes da "guerra santa" nos anos 80, que aderiu recentemente ao EI.

É importante apontar a diferença entre o Taleban e o Estado Islâmico, por mais que ambos usem métodos horrorosos.

O Taleban tem um objetivo nacionalista, digamos assim: obter o reconhecimento como ator político, o que, no futuro, eventualmente, lhe permitiria controlar o Afeganistão e nele impor a sharia, a lei islâmica.

Por isso, como apontam Dan De Luce e Sean Naylor, também na "Foreign Policy", "o chefe do Taleban dispõe-se a negociar com governos ocidentais para alcançar seus fins políticos, ao contrário do Estado Islâmico, que não tem interesse em conversas de paz ou em reconhecer fronteiras nacionais".

Nesse cenário, a perspectiva de que o diálogo de paz seja de fato retomado é, no mínimo, nebulosa, como aliás o é a atividade do Taleban, do que dá prova o ocultamento por dois anos da morte de seu líder.

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