É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.
Europa, da alegria à melancolia
Tivessem uma sintonia fina com o público, os políticos europeus evitariam mandar tocar o hino oficial da União Europeia durante as cerimônias comemorativas, neste sábado (25), dos 60 anos do Tratado de Roma.
É o documento que criou a Comunidade Econômica Europeia (hoje rebatizada para União Europeia) e assentou os pilares do que seria o mercado comum.
Justin Tallis - 20.fev.2017/AFP | ||
Bandeira da UE diante do Big Ben, em Londres |
Acontece que o hino oficial chama-se "Ode à Alegria", uma das costelas da 9ª Sinfonia de Beethoven. É belíssima, mas alegria é tudo o que falta à comunidade europeia nos dias que correm.
Não que haja propriamente tristeza, salvo na Grécia, em que o estado de espírito predominante é ainda mais grave. Chega ao desespero, depois de tantos anos de "austericídio".
O que há, essencialmente, é melancolia. Fácil de explicar, de resto, nas palavras de Frans Timmermans, social-democrata holandês que é vice-presidente da Comissão Europeia, o braço executivo do conglomerado de 28 países (incluindo o Reino Unido, prestes a abandoná-lo): "Agora, pela primeira vez, as classes médias acreditam que há um elevador [social] mas que só pode levá-las para baixo", declarou Timmermans ao "El País".
É natural que haja esse sentimento desagradável porque, nos últimos anos, confluíram pelo menos três crises graves: a da economia, iniciada em 2008 e ainda mal superada; a dos imigrantes, que fez parte da Europa pôr para fora os seus piores instintos; e a do terrorismo, que se fez de novo presente na antevéspera do 60º aniversário.
Foi aparentemente casual, mas o fato é que o ataque se deu nas imediações do Parlamento britânico, um dos dois grandes símbolos do que a Europa tem de melhor (a democracia).
A outra notável qualidade é o Estado de bem-estar social, o modelo menos ruim que o ser humano conseguiu construir até agora.
Por mais que a crise tenha imposto cortes nas áreas sociais, às vezes profundos, ainda sobrevive um sistema sem igual no resto do planeta.
Olhando para trás, é evidente que a construção europeia é uma história de tremendo sucesso. Basta lembrar que, dos seis membros originais que assinaram o Tratado de Roma, passou-se agora a 28 países, nos quais vivem 510 milhões de pessoas.
A "marca Europa" conseguiu atrair antigas ditaduras do sul (Portugal e Espanha) e do leste (muitos dos países que a União Soviética subjugava até o fim da década de 1980).
O problema é que, olhando para a frente, tanto o sucesso político como o social parecem ameaçados pelo avanço da xenofobia e do nacionalismo –ideias que são o oposto exato da cultura comunitária que esteve na origem da União Europeia.
Há um embate entre o Estado supranacional e os velhos Estados-nações.
Como acredito em Samuel Johnson (1709-1784), para quem "o patriotismo é o último refúgio do canalha", torço para que prevaleça o espírito comunitário.
Um primeiro resultado do duelo está próximo: a eleição francesa de abril/maio dirá se o nacionalismo, ainda por cima extremado, ganhará ou triunfará a Europa, com alegria ou com melancolia.
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