Clóvis Rossi

Repórter especial, foi membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

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Clóvis Rossi

Memórias de quando a democracia derruba os véus da hipocrisia

Fechou a revista espanhola "Interviú". Foi uma das grandes responsáveis, talvez a maior, pelo "destape", como os espanhóis chamaram o porre de liberdade em todos os campos que curtiram com o fim da ditadura de Francisco Franco Bahamonde, o "caudilho de Espanha pela graça de Deus" que reinou de 1939, ao fim da Guerra Civil, até morrer em 1975.

(A igreja ainda deve desculpas pelo apoio que uma parte importante da hierarquia e do clero deram ao regime).

Franco morreu em novembro de 1975 e, seis meses depois, em maio de 1976, a "Interviú" começou a circular, com mulheres nuas na capa, mas também com belas reportagens investigativas.

"El País" fez o seguinte necrológio para a revista: "O ditador Franco acabava de morrer, a democracia dava seus primeiros passos e os espanhóis estavam ávidos por saber e por deixar de ser pacatos; eram os últimos europeus que, para ver um nu erótico na tela grande, tinham que cruzar a fronteira e comprar entrada em algum dos cinemas do Sul da França. A Espanha cheirava a naftalina e havia ânsia de liberdade. Interviú encarnou tudo isso e a fórmula de mesclar o erotismo proibido pelo franquismo e um jornalismo ousado, até então vetado, funcionou".

Fico particularmente feliz com essa descrição da época porque coincide com a minha percepção, posta em um dos raríssimos textos que gostei de escrever, publicado pelo "Estadão" em 16 de junho de 1977, quando se realizavam as primeiras eleições livres.

Reproduzo os primeiros parágrafos:

"As mulheres pintadas nos cartazes de cinema da Gran Vía —a principal avenida de Madri— fizeram um lento e público strip-tease. À medida que os ventos liberalizantes sopravam sobre a política espanhola, elas foram tirando suas roupas e, hoje, estão tão nuas quanto mulheres idênticas de cartazes idênticos nas outras capitais europeias ou norte-americanas [note que não mencionei o Brasil, que, em 1977, ainda era uma ditadura].

As mulheres pintadas nas telas da Gran Vía são apenas um símbolo da nova Espanha. Na verdade, foi todo o país que tirou outros e pesados véus, que encobriam suas verdades, suas vergonhas e seu pudor, muitas vezes falso —véus que cobriam, em resumo, a liberdade. A Espanha subterrânea e reprimida durante 40 anos emergiu, então, e não apenas nos comícios e nas siglas partidárias ou na volta dos muitos exilados políticos. Nos cinemas e nos teatros, nas livrarias e nos clubes noturnos —um pouco por toda parte**- um país está se reencontrado consigo mesmo. Os ares da liberdade agora sopram fortes e trazem, inevitavelmente, riscos e abusos, mas só os mais renitentes nostálgicos se recusam a viver a delirante, arriscada, mas fascinante aventura desse reencontro".

Recupero esse texto não tanto porque a "Interviú" fechou. É sempre uma perda, mas a Espanha já não cheira a naftalina. Ao contrário, é um país deliciosamente aberto, colorido, vivo. Pena que, em boa parte do mundo, Brasil inclusive, tocam músicas de amor a autoritarismos de diferentes calibres e naturezas, mas, todos eles, prontos para recolocar véus que escondem as verdades.

Crédito: Javier Soriano - 27.nov.2017/AFP A Gran Vía, principal avenida de Madri, atualmente
A Gran Vía, principal avenida de Madri, atualmente
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