Clóvis Rossi

Repórter especial, foi membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

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Clóvis Rossi

Democracia, é um simples recesso ou se trata de um retrocesso duradouro?

Crédito: Fabrice Coffrini/AFP Segurança armado no telhado de hotel em Davos, na Suíça, onde acontece o Fórum Econômico Mundial
Segurança armado no telhado de hotel em Davos, na Suíça, onde acontece o Fórum Econômico Mundial

Lembra-se de Francis Fukuyama, o filósofo que, ao cair o Muro de Berlim, decretou o "fim da História", com o triunfo definitivo do capitalismo e da democracia?

Pois é, agora até ele tem dúvidas, expostas em artigo para uma coletânea organizada pelo Instituto de Pesquisa do banco Credit Suisse com o significativo título de "O Futuro da Política: emergindo de uma recessão ou entrando em um novo normal?".

A coletânea está sendo divulgada nesta terça-feira (23), em Davos, em evento à margem do programa oficial do encontro anual-2018 do Fórum Econômico Mundial, que costuma ser a celebração do capitalismo e da democracia. O relatório deixa claro que, este ano, há mais dúvidas do que celebrações.

Fukuyama, tão seguro há 20 e poucos anos, agora se permite perguntar se a ascensão do que chama de "nacionalismo populista" é apenas "uma recessão da democracia" ou um retrocesso de longo prazo na fortuna da democracia liberal mundo afora.

Fukuyama não é o único dos convidados do Credit Suisse que teme o retrocesso da democracia.

A ideia de "recessão da democracia" é aceita na abertura do relatório apresentado em Davos: "A política está em recessão. (...) No futuro, é de se esperar que a ordem política global mude, em função principalmente da reversão da tendência rumo à democratização, das ameaças do nacionalismo populista e das implicações do fim da globalização".

Meu palpite: parecem-me conclusão tremendistas, sujeitas à reavaliações como as que Fukuyama agora ensaia em relação ao "fim da história".

Primeira objeção: o nacionalismo populista de fato avançou na Europa principalmente, mas também nos Estados Unidos, com Trump. Mas nem por isso ganhou qualquer eleição. Perdeu na Holanda, na França, na Alemanha e até nos Estados Unidos (Hillary Clinton teve 3 milhões de votos mais que Trump que só se tornou presidente devido a um sistema eleitoral esdrúxulo).

Mesmo na América Latina, território historicamente livre para o populismo, as eleições mais recentes mostraram mais derrotas que vitórias para os populistas.

Segunda objeção: quem é que disse que a globalização acabou? Os Estados Unidos de Trump podem ensaiar uma retirada, mas outros países, notadamente a China, logo se apresentam para tomar o lugar e dar continuidade a um processo que parece não ter volta atrás, goste-se ou não dele.

O risco à democracia, de todo modo, ficou muito exposto, às vésperas do Fórum de Davos, pelo balanço de 2017 da Freedom House : é o 12º ano em que há mais retrocessos do que avanços nas liberdades, mundo afora.

Comenta Lluís Bassets em "El País" : "Desfaleceu o impulso democratizador que conduziu a uma onda de transições de 1970 até 2010, período em que o número de países democráticos passou de 35 a 120, cifra que, segundo a Freedom House, retrocedeu [no ano passado] para 88, em um total de 195".

Confesso que tenho reparos às classificações da Freedom House. No relatório agora divulgado, coloca o México, por exemplo, como não totalmente livre, o que me parece um exagero.

Mas sou obrigado a admitir que meu raciocínio é determinado pelas ameaças de que fui testemunha, especialmente na América Latina, nos anos 60 a 80. A democracia, então, era ameaçada pelos tanques. Se essa ameaça parece ter sido afastada, surgiram outras que são mais difíceis de encaixar na política.

No caso mexicano, surgiram por exemplo o narcotráfico e a violência e ele associada, que de fato restringe as liberdades públicas.

No resto da América Latina (e também no México, a propósito), vale uma outra ameaça, exposta em artigo para o "Financial Times" de Daniel Kaufmann, presidente do Instituto para a Governança de Recursos Naturais, e Vinod Thomas, ex-vice-presidente sênior do Banco Mundial:

"O Leste da Ásia e a América Latina experimentaram recentemente grandes escândalos de corrupção. Suas perspectivas econômicas dependem, crucialmente, de boa governança e de controle da corrupção".

Acrescentam: "As perspectivas de crescimento da América Latina são prejudicadas pela extensão da captura do Estado - [ou seja] a indevida influência de elites corporativas sobre as políticas estatais, leis e regulamento".

A Lava Jato expôs com uma crueza fantástica o tamanho dessa captura - que acaba representando o papel que antes os tanques desempenhavam no desfalecimento da democracia.

Tudo somado, fico com a opinião, menos apocalíptica de Andrew Rawnsley, comentarista político chefe do "Observer", em artigo para o Guardian: "A democracia é mais frágil do que muitos de nós imaginávamos, mas não acredito que esteja condenada".

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