Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 

clóvis rossi

 

02/09/2010 - 17h35

Viagem ao ódio dos irmãos siameses

O sangue mais recente a correr no conflito entre israelenses e palestinos apareceu perto da cidade de Hebron, na terça-feira, dia em que foram assassinados quatro judeus que moravam em um assentamento próximo.

Visitar Hebron é como colocar sob uma lupa as raízes do conflito e do comportamento das duas tribos. Fiz duas incursões pela cidade que tem forte carga mística e histórica --e por isso mesmo é explosiva.

Reproduzo o relato publicado pela Folha no dia 21 de janeiro de 1966, ano da primeira eleição palestina (janeiro) e de importante eleição em Israel (abril), para pôr a lupa ao alcance do leitor:

Segue-se o texto na íntegra:

"É uma única pessoa, cultuada por muçulmanos e por judeus. Chama-se Avraham (Abraão, para os judeus) ou Ibrahimi (para os muçulmanos) -ou Al Khalil er Rahman, 'Amigo do Senhor'.

No túmulo, no entanto, Abraão/Ibrahimi são dois. O sepulcro fica na mesquita de Ibrahimi, em Hebron (35 km ao sul de Jerusalém), ou, como preferem os judeus, na caverna de Machpelá.

Foi lá, ao lado do túmulo, que, em fevereiro de 1994, um médico judeu fanático, Baruch Goldstein, entrou atirando contra muçulmanos que oravam. Matou 29.

A partir de então, as autoridades israelenses dividiram em duas partes a mesquita/caverna. Uma entrada é reservada só para judeus. A outra, para muçulmanos ou não-judeus em geral.

Cada um chega por seu lado à tumba de Abraão/Ibrahimi. Cada um vê de um ângulo diferente o sepulcro coberto por uma tapeçaria em que se lê, em árabe:

'Esta é a tumba do profeta Ibrahimi, que descanse em paz'.

Não descansou nos séculos que se seguiram, e sua história acaba sendo a síntese da história de Israel e dos palestinos.

São irmãos siameses, que amam odiar-se, condenados a conviver no mesmo corpo de 89.351 km2 (pouco mais de 1% do território brasileiro).

Ou, como prefere o mais conhecido escritor israelense, Amos Oz, um pacifista:

'O conflito entre israelenses e palestinos é um conflito entre um direito e outro direito: eles têm direito aos territórios porque seus antepassados os haviam habitado faz 1.300 anos; nós temos direito aos territórios porque nossos antepassados os habitam há milhares de anos e não temos outra pátria'. Por isso, Oz sugere dividir os territórios. 'Não existe outra saída ao círculo de violência.'

A eleição palestina faz parte do processo de divisão dos siameses, inevitavelmente dolorosa e de resultado incerto como qualquer cirurgia de grande porte.

Para sentir a dificuldade, basta sair da mesquita e tomar a primeira viela à esquerda. É a entrada da casbá, ancestral coração de qualquer cidade árabe.

O emaranhado de vielas é uma espécie de shopping center primitivo, tomado pelo cheiro das especiarias expostas e da fritura dos 'shish-kebab', o espetinho de carne tradicional.

À porta do açougue do velho Nazir, só resta inteira a cabeça de um camelo, carcaça espetada num pau e descarnada para a venda da carne. Os olhos, grandes e abertos, olham a nesga de céu que se vê da casbá subterrânea e escura.

Se ainda enxergassem, veriam a bandeira azul e branca de Israel com a estrela de David, desafiadoramente espetada na janela, justo em cima da casbá.

A janela pertence à colônia Avraham Avinu ('Nosso Pai Abraão'), um bunker para apenas 20 famílias judias.

Fica bem no centro de Hebron, cidade de 120 mil palestinos, um dos mais importantes polos econômicos da Cisjordânia.

Para proteger essas famílias e as outras 52 (com suas 200 crianças) das demais colônias de Hebron, o Exército israelense não entregou a cidade aos palestinos antes das eleições.

Ao contrário, dividiu-a em duas. Para ir de carro do centro comercial à mesquita, uma distância de 500 m, os palestinos precisam agora percorrer 7 km ou 8 km.

Os colonos só saem armados de metralhadoras ou protegidos por veículos e tropas do Exército.

A rua King David, que era a principal, agora parece uma rua-fantasma.

Carros, só os de placa amarela de Israel (os carros palestinos têm ou placas azuis, se a matrícula for antiga, ou verdes, emitidas pelas novas autoridades).

Pedestres, todos podem passar. Mas os palestinos evitam circular pela King David, na qual, além da Avraham Avinu, fica também a colônia de Beit Hadassah.

'Nos tratam como se não fôssemos seres humanos', diz Chaher Khadi, dono de uma floricultura da rua Bab Al Zauieh, agora a principal via comercial.

David Wilder, porta-voz dos colonos da Avraham Avinu, confirma indiretamente a suposição de Khadi: 'Os árabes nos ensinaram que não se pode confiar neles'.

A julgar pela disposição das duas partes, Abraão/Ibrahimi continuarão sendo dois na tumba da mesquita/caverna.

Os colonos não querem sair. 'Hebron é nossa', diz uma pichação em hebraico na cara sorridente que o candidato às eleições palestinas Mahmud Amer exibe em cartaz na porta de uma loja.

'Mesmo que nos matem a todos, não concordamos com a divisão da cidade', rebate Raed Charaui, dono de uma lojinha de eletrônica na King David.

Em consequência do fechamento da rua, Charaui vende agora no máximo 20 shekels por dia (cerca de US$ 6,45), contra dez vezes mais antes do bloqueio.

Choca, ao longo da King David, o fato de a estrela de David, símbolo do judaísmo, estar pichada na porta de casas que são ou foram de árabes, como, há 50 anos, os nazistas pintavam a suástica na porta da casa dos judeus, marcando-as para os pogrons.

Pior: na entrada de Hebron, está nascendo um culto a um tipo de gente muito diferente de Abraão/Ibrahimi. É o mesmo Baruch Goldstein do ataque à mesquita.

Seu túmulo fica na Kyriat Arba, condomínio fechado que é, na prática, uma colônia-fortaleza para 14 mil pessoas.

'O santo médico Baruch Goldstein deu sua alma para o povo de Israel', diz inscrição no túmulo.

Eli Tzur, colono e dono de uma lanchonete à entrada de Kyriat Arba, perto da sepultura, conta, orgulhoso, que 'vêm sempre muitos turistas, que fazem pedidos como se fosse um santo'.

Algo me diz que, 14 anos depois, o texto continua atualíssimo.

clóvis rossi

Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. É autor de obras como 'Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo' e 'O Que é Jornalismo'. Escreve às terças, quintas, sextas e domingos.

 

As Últimas que Você não Leu

  1.  

Publicidade

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página