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clóvis rossi

 

08/09/2010 - 18h09

O Alcorão e o jornalismo espetáculo

O jornalismo espetáculo que toma conta do planeta cometeu seu atentado mais recente ao dar espaço para um maluco chamado Terry Jones que inventou o dia de queimar o Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos, marcando-o para o 11 de setembro, a data dos atentados às Torres Gêmeas de Nova York e ao Pentágono (em 2001).

Depois de apropriada pelos "facebook" da vida, se alastra como fogo na pradaria.

Fica tarde demais para contextualizar um pouco a coisa e mostrar que Jones não representa nada nem ninguém. Segundo o relato da competentíssima correspondente da Folha em Washington, Andrea Murta, tem apenas 50 seguidores na igreja que criou, a "Dove World Outreach".

Gainesville, a cidadezinha da Flórida em que Jones atua, tem somente 114 mil habitantes e nenhuma relevância política nem mesmo no Estado, quanto mais no país.

É óbvio que o maluco estava buscando seus 15 minutos de fama ao lançar o dia de queimar o Alcorão. Conseguiu bem mais do que isso. O jornal espanhol "El País" chegou a dar o seguinte título, no alto da primeira página desta quarta-feira: "Alarma mundial pela anunciada queima pública do Alcorão no próximo 11-S".

Não tenho condições de dizer se há ou não "alarma mundial", mas o general David Petraeus, o comandante militar norte-americano no Afeganistão, se alarmou --e bastante. Disse que "as imagens do Alcorão ardendo serão usadas por extremistas no Afeganistão --e no resto do mundo-- para incitar à violência".

É o que dá o jornalismo tratar como notícia relevante (e séria) o que é apenas folclore, perigoso, mas folclore. No máximo, no máximo, o caso do "pastor" Jones deveria entrar nas colunas de "faits divers", ao lado, por exemplo, da ameaça de Maradona de desfilar nu se a Argentina fosse campeã do mundo.

É evidente que o jornalismo espetáculo pegou carona na islamofobia que de fato é uma tendência incômoda e inquietante não apenas nos Estados Unidos. Daí, no entanto, a tomar a ameaça de um maluco perdido no interior da Flórida como representativa dessa tendência vai todo um abismo.

Nem o reacionaríssimo movimento "Tea Party" chegou ao extremo de mandar ao fogo do inferno o livro sagrado dos muçulmanos.

Corre-se o risco de deixar de discutir o relevante que é, por exemplo, a polêmica em torno da construção de uma mesquita nas imediações do chamado "Ponto Zero", o centro dos ataques terroristas de 11 de setembro.

Nesse caso sim, as sensibilidades de uma parte e da outra estão à flor da pele. Dispensam o espetáculo.

Não por acaso, acaba de sair pesquisa, relativa à América Latina mas que, suponho, vale também para os Estados Unidos, que mostra, primeiro, o que já se sabe: os noticiários de televisão são os que gozam de maior confiança (ou audiência?): 61,9% dizem que confiam neles muito ou algo contra apenas 9,2% que não têm a menor confiança.

Até aí, nem é notícia. Depois é que vem o vínculo com o caso do "pastor": os pesquisados dizem que o noticiário de TV é o melhor instrumento para que o governo os ouça. Mecanismos mais, digamos, tradicionais (procurar o Congresso, a Justiça ou as autoridades do Executivo diretamente) não são tão eficientes para alcançar o ouvido do poder.

Por isso mesmo, o segundo mecanismo para ser ouvido são as manifestações na rua, de preferência com o bloqueio do trânsito. Os pesquisados dizem que é dessa forma que se consegue aparecer na TV e, por extensão, chegar aos poderosos.

É óbvio que Terry Jones jamais chegará a ser ouvido por quem quer que seja se a TV --meio em que jornalismo e espetáculo muitas vezes andam de mãos dadas-- não mostrar a queima do Alcorão.

clóvis rossi

Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. É autor de obras como 'Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo' e 'O Que é Jornalismo'. Escreve às terças, quintas, sextas e domingos.

 

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