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clóvis rossi

 

12/08/2011 - 12h20

Erramos. E continuamos errando

O jornalismo tem sua parte de culpa na crise global. Não digo todo o jornalismo porque sempre há exceções, para o bem ou para o mal. Mas que nos transformamos em tambor acrítico e passivo dos tais mercados, não tenho a menor dúvida.

Não é preciso recuar muito no tempo para apontar problemas graves no noticiário econômico dos jornais. Não fomos capazes, por exemplo, de antecipar a Grande Recessão que começou em 2007, com a crise das hipotecas "subprime" nos Estados Unidos, e, no ano seguinte, virou uma crise ampla, geral e irrestrita.

Em defesa do jornalismo, poder-se-ia dizer que ninguém previu a crise. Nem economistas nem governos. O único que a anunciou tornou-se famoso por isso. Chama-se Nouriel Roubini.

Mesmo assim tenho lá minhas dúvidas. Acompanho Roubini faz anos, porque ele é frequentador regular dos encontros anuais do Fórum de Davos, que eu sigo faz 21 anos. Roubini fazia sempre, antes de estourar a crise, o papel de profeta do apocalipse, até folclorizado por isso. Vivia repetindo, ano após ano: a crise vem aí, a crise vem aí, a crise vem aí.

Ninguém o levava a sério. Nos anos imediatamente anteriores à explosão, ele se hospedava no mesmo hotel que eu, o Banhof Terminus, o popular Hotel da Estação, porque fica bem em frente à estação de trem de Davos Platz. Três estrelas, familiar, aconchegante, mas modesto para um guru. Muitas vezes, tomávamos café da manhã no mesmo horário. Ele estava sempre sozinho, lendo seu "Financial Times".

Depois da crise, quando passou de profeta do apocalipse a oráculo, Roubini mudou de hotel para um mais luxuoso e por onde ia estava sempre cercado de um mundão de gente ávida por ouvir o profeta.

Voltemos ao fio da meada. Se não fomos capazes de antever a crise, depois dela não aprendemos nada. Repetimos mecanicamente o que diz o mercado sobre as causas desta segunda etapa do imbróglio. Só esporadicamente aparece uma voz sensata como a de Heiner Flassbeck, diretor da Divisão de Globalização e Estratégias de Desenvolvimento da Unctad (Conferência da ONU para o Comércio e Desenvolvimento), ex-vice-ministro de Finanças da Alemanha (1998-1999), entrevistado na quinta-feira por Eleonora de Lucena, da Folha.

Flassbeck diz que os ortodoxos (deveria ter acrescentado também os mercados) "chamam a crise, claramente causada pelos mercados financeiros, de 'crise da dívida dos governos'. Não tem nada a ver com crise da dívida. Os governos pagaram alguns jogadores irresponsáveis das finanças, e por isso a dívida dos governos é maior do que há cinco anos. É luta ideológica contra os governos. Nada a ver com pesquisa acadêmica séria".

Pode-se concordar ou não com essa análise (eu concordo integralmente), mas não se pode, no noticiário, encampar a visão dos ortodoxos/mercado e omitir os demais pontos de vista. É um erro que cometemos diariamente, sempre com as exceções que apenas confirmam a regra.

Erro tanto mais grave porque Flassbeck não se limita a apontar o problema. Sugere também uma saída, assim: "Uma forte regulação nos mercados financeiros, impedindo apostas de cassino e forçando investimentos reais. Um sistema monetário global diferente, no qual as moedas não sejam determinadas pelo mercado. E nova regulamentação para as commodities, na qual seus preços não sejam mais determinados pelo mercado financeiro".

De novo, pode-se concordar ou não com ele, mas é incorreto limitar-se a propor unicamente a saída que defendem mercados e ortodoxos: cortar, cortar, cortar os gastos do governo.

Para não esticar demais, vale lembrar os pretextos que o mercado menciona para a subida ou queda das bolsas, e que nós reproduzimos sempre passiva e acriticamente.

Exemplo desta semana: na terça-feira, as bolsas subiram, depois de vários dias de quedas espetaculares. Qual a explicação que apareceu em praticamente todos os jornais? O Fed, o banco central dos EUA, decidira manter entre 0% e 0,25% a taxa de juros (e até 2013). Logo, aplicar em papeis cujo rendimento depende de juros ficara menos atraente.

Bom, no dia seguinte, as bolsas sofreram nova surra espetacular, apesar de os juros continuarem obviamente onde estavam. A nova "explicação" foi a de que a nota da França seria rebaixada pelas agências de "rating". Boato, puro boato. Nem importou o fato de que o boato foi desmentido por duas das agências, além do próprio governo.

Já é ruim o jornalismo reproduzir boatos, mesmo que originados no mercado. Pior fica não lembrar que, mesmo que houvesse o rebaixamento, não significa nada. Tanto não significa que os Estados Unidos tiveram sua nota rebaixada na sexta-feira pela Standard and Poor's e, não obstante, seus títulos se valorizaram fortemente na segunda-feira.

Custava lembrar que a S&P e demais agências de avaliação de risco fracassaram miseravelmente no pré-crise, ao manter o triplo A para, entre outros, o Lehman Brothers, cuja quebra foi o catalizador da Grande Depressão?

É só comparar: se, digamos, Antonio Palocci for nomeado amanhã ou depois para um novo cargo, público ou privado, todos os jornais sérios lembrarão seus antecedentes, logo nas linhas iniciais do noticiário. Quando a S&P rebaixou a nota americana, não houve a menção correspondente a seu passado ou, quando houve, foi em texto marginal, sem a ênfase atribuída ao rebaixamento.

clóvis rossi

Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. É autor de obras como 'Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo' e 'O Que é Jornalismo'. Escreve às terças, quintas, sextas e domingos.

 

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