Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas.
Laços afetivos falam mais alto que as obrigações coletivas na nossa cultura
Mariza Dias/Editoria de Arte/Folhapress | ||
Quando deixei a França e me estabeleci no Brasil, na segunda metade dos anos 1980, os brasileiros estranhavam e me perguntavam por que diabo eu faria isso. Naqueles anos, o fluxo era oposto ao meu: para muitos, os aeroportos do Galeão e de Guarulhos pareciam ser a única saída.
Para responder, escrevi um livro sobre minha "descoberta" do Brasil. Hoje, atualizando esse livro para sua reedição, encontrei mais uma pergunta. Não só: por que vim me instalar no Brasil em 1989? Mas também: por que insisti e voltei ao Brasil em 2005, após dez anos nos EUA?
Os não brasileiros também me perguntaram inúmeras vezes, desde 1989, "Por que o Brasil?". Uma resposta é que, dos vários países onde eu vivi, o Brasil é aquele onde fiz meus melhores amigos.
Será que a amizade teria mais chances no país do "homem cordial"? A ideia é tentadora, mas, cuidado: a "cordialidade" brasileira, da qual falou Sérgio Buarque de Holanda, significa só que os laços afetivos ("cordial" significa "do coração"), na nossa cultura, falam mais alto do que as obrigações coletivas, as leis etc. É o famoso: "aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei". A cordialidade não implica nem explica a amizade.
Sérgio Buarque também notou que os brasileiros seriam avessos aos conflitos, mais propensos a encontrar zonas de acordo do que a desacordos e brigas.
Será que a primazia dos laços afetivos e a vontade de não brigar fariam que os brasileiros sejam mais amigos ou melhores amigos? Vamos com calma.
1) Com a polarização política do país e o ódio que circula nas redes sociais, o brasileiro continua "cordial" (ou seja, dominado pelo coração, que é também o órgão com o qual a gente odeia), mas não parece mais ser avesso ao conflito (ele ataca e insulta com afinco e prazer).
2) "Amigo", no Brasil, é o jeito (carinhoso?) de chamar o garçom ou outros desconhecidos supostamente "inferiores". Ou seja, "amigo" serve para negar uma tremenda desigualdade social: chamamos de amigo quem nunca será amigo da gente.
Pausa. Brasil à parte, o que é a amizade para mim? Quais são as condições básicas para que alguém venha a ser meu amigo?
Ética a Nicômaco |
Aristóteles |
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Aristóteles consagra dois capítulos da "Ética a Nicômaco" à amizade. Talvez por ele estar escrevendo um tratado de ética, acha indispensável que os amigos compartilhem uma visão parecida do que é o bem.
Certamente, não conseguiria ser amigo de alguém que tenha critérios morais totalmente opostos aos meus. Meu critério do "totalmente oposto", aliás, é este: meus amigos podem ter ideias morais diferentes das minhas, mas não podem dever suas ideias a um grupo, seja qual for. Em matéria de moral, meus amigos e eu devemos ter de comum isto: preferimos errar sozinhos a estarmos certos em grupo. E mais isto: meus amigos e eu cultivamos nossas próprias ideias sem a intenção de transformá-las em breviário universal –na verdade, sem nenhuma vontade de impô-las a outros.
Cícero (um de meus autores preferidos) escreveu um diálogo sobre a amizade (De Amicitia, "Saber Envelhecer e a Amizade", LPM pocket) em que descreve o que fazem os amigos: resumindo ao máximo, eles conversam para aprenderem juntos.
Juntando Aristóteles com Cícero, chego a uma definição da amizade que me satisfaz: entre indivíduos que podem ser muito diferentes, a amizade é possível quando há base moral comum (para mim, o hábito de pensar e julgar com a própria cabeça) e a disposição a exercitar a razão como maneira de se comunicar, entender-se mutuamente e se dispor a, eventualmente, mudar de ideia.
Em 1981, Jürgen Habermas propôs redefinir a razão como possibilidade de diálogo. Li a "Teoria do Agir Comunicativo" (WWW Martins Fontes) só nos anos 90, em plena Guerra Civil Iugoslava: a razão comunicativa, assassinada na Segunda Guerra, morria de novo, em Sarajevo e Srebrenica. Sua existência entre os homens parecia improvável.
Mas não é impossível acreditar que a razão como diálogo seja possível entre amigos –aliás, que os amigos sirvam para isto, para manter viva a possibilidade da razão.
Em suma, chegando ao Brasil fiz amigos não tanto porque era o Brasil, mas porque tive sorte.
Agora, mundo afora, a amizade é hoje uma prática que se perde. Nas redes sociais, amigos são tão abstratos quanto inimigos com quem se trocam farpas. Aparentemente, ninguém quer saber por que é amigo ou inimigo do outro.
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