É atriz e autora de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato Falado" (ed. Globo).
Golpe de pernas
— Por que é que o senhor tá de terno e gravata neste calor?
— Porque sou obrigado.
— Pois eu estou lhe desobrigando.
Ilustração Zé Vicente |
Minha amiga Adriana entrou no prédio, estacionou seu carro e deu a volta até a portaria: "Seu José, o senhor pode me fazer um favor? Ligue para todos os apartamentos e pergunte se o proprietário faz questão de que os seguranças trabalhem de terno e gravata nesta calçada escaldante." Organizou uma circular com as assinaturas e, na semana seguinte, os seguranças trabalhavam agradecidos de camisa de manga curta.
Recebi recentemente por e-mail uma pequena fábula de Olivier Clerc: a história de uma rã que foi cozida sem perceber. Colocada na panela com água fria, ficou lá, nadando na piscininha. O fogo foi aceso e ela foi se deliciando na aguinha morna. Ficou meio quente demais, mas ela estava muito relaxada pra reclamar e, quando ficou insuportável, a pobre rãzinha já não tinha mais forças para dar seu golpe de pernas. Se tivesse sido atirada na água quente, mesmo se queimando, talvez tivesse conseguido pular fora da panela.
A atitude de minha amiga juntou-se à rã na panela e me fez também abrir a janela do carro para, de minha parte, desobrigar o segurança de minha rua de suar sob seu terno e gravata. Não consegui, como ela, organizar uma circular, mas as duas histórias não me saem da cabeça e, a partir de então, não paro de colecionar absurdos urbanos a que fomos nos acostumando lentamente.
Domingo passado, cruzei a praça de alimentação de um shopping da cidade. Parei no meio, assustada com os decibéis. Olhei em volta as rãzinhas em seu imenso caldeirão. O ar condicionado, as sacolas de marca, os celulares e hamburguers afrouxando-lhes as pernas. Saí do shopping lembrando dos almoços de domingo na casa de minha avó. Na calçada, o calor apocalíptico me fez suspeitar de minha cegueira a respeito dos aumentos anuais de temperatura. Caminhei para casa angustiada, duvidando de meu golpe de pernas, mas me acalmei um pouco ao entrar na rua e ver João, o segurança, sem gravata e de camisa de manga curta.
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