É atriz e autora de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato Falado" (ed. Globo).
A bunda de fora
Vi o corpo estendido no chão. Parei. Parada, percebi que não parei pelo corpo. Parei porque o homem estava com a bunda de fora. Me dei conta que pessoas caídas na rua não são mais capazes de nos fazer parar a não ser que tenham nada menos que a bunda de fora.
Podem ter passado mal e desmaiado que não as ajudaremos, porque a coisa mais normal nessa nossa vida inventada é ver alguém em sono profundo na calçada.
Ilustração Zé Vicente | ||
Há muito, perdemos inclusive a capacidade de avaliar se o estado horizontal do sujeito é voluntário ou obra do destino. Não ousamos interferir na "escolha" daquele que resolveu dormir na rua, e detectar alguém que precisa ser levado ao hospital depende agora pura e exclusivamente de nosso preconceito.
Um bom figurino talvez os possa salvar. Um tênis caro, uma roupa limpa poderão fazê-los chegar à emergência. No meu caso, foi a bunda de fora.
O homem deitado de bruços naquele estado caracterizou uma imagem de abandono destacada daquelas que eu via todos os dias. Atravessei a rua. Ele respirava. Fui até o ponto de táxi e perguntei a um dos motoristas se ele não achava que o homem precisava de ajuda.
—Por quê? —ele perguntou.
—Ele tá com a bunda de fora!
O taxista riu. Contou que o tal moço sempre dormia por ali, bêbado.
Tentei seguir o meu caminho, mas não consegui. Voltei. Ele ainda respirava. Fiquei ali, sem saber o que fazer, olhando a bunda do sujeito. Senti vergonha de olhar. De só olhar.
Com a ponta dos dedos, peguei um papelão que estava nas suas coisas e o cobri. Lembrei de minha avó que me jogava uma colcha em cima nos meus descuidados sonos da tarde. Com vontade de chorar, segui adiante e fiquei incomodada ao pensar que alguém pudesse ter visto a cena e suposto que eu lhe cobri a bunda por julgá-la um atentado ao pudor.
Atentado ao pudor é saber que aquele homem não tinha ninguém, nem sequer um amigo de pinga pra lhe subir a calça depois do desmaio. Atentado ao pudor mesmo é pensar que eu preciso de uma bunda de fora para reparar num homem desmaiado na calçada.
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