Denise Fraga

É atriz e autora de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato Falado" (ed. Globo).

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Abrindo janelas

Abri a porta do guarda-roupa e não enxerguei nada. Liguei a lanterna do celular e já tentava escolher as roupas do dia quando parei petrificada. Eu simplesmente não tinha aberto a janela do quarto.

Tinha acordado, ido ao banheiro e só me dei conta do absurdo da coisa quando vi minhas roupas iluminadas pela lanterna com o sol já brilhando lá fora.

Provavelmente a captura se deu ao som do despertador. Estou mesmo para trocar a bateria de meu antigo relógio, um daqueles digitais, que acertamos irritados enfiando a ponta de uma caneta no buraquinho. É terrível e pouco confiável, mas esse negócio de acordar com o despertador do celular pode ser muito perigoso. Se descuidarmos, mergulhamos no dia cambaleando até o banheiro, abrindo janelas sem abrir a janela. Aquela, a do quarto, a da luz verdadeira, um dos primeiros prazeres do dia.

Crédito: Ilustração Zé Vicente

Tenho a sorte de ainda ter em meu quarto uma janela de duas folhas —e se há coisa que me dá prazer é lançar-me parede afora para abri-la. Ficar observando a manhã da vizinhança. Perceber a temperatura. No dia do quarto escuro, me dei conta inclusive que já tinha andado a escolher agasalhos no aplicativo da meteorologia.

Estou sendo sugada por meu smartphone. Parece que não tem mais jeito. São mais e mais facilidades colocadas na palma da minha mão aumentando a cada dia a curva de minha cervical.

É difícil resistir. E me assusta perder janelas. Ele já havia me roubado as dos táxis, meu doce flanar de olhos pela cidade. Agora resolveu meter a mão na janela do meu próprio quarto. Puro despeito. Ela é um simples buraco na parede que me permite olhar sem ser vista, olhar o todo, olhar de longe, de cima, sem satélite e com a possibilidade de descer de elevador para a realidade. E o melhor: sem que isso sirva exatamente para alguma coisa.

Meu smartphone me desperta me jogando no ciclone da funcionalidade e finge me surpreender com suas janelas. Me chama de rainha, me fornecendo tudo por demanda, mas quer que eu escolha dentro do que escolheu pra mim. Não me deixa mais perder tempo nem vagar no terreno da surpresa, no vácuo, no que está por vir.

Não demorará a me convidar a desligá-lo temporariamente num hipócrita aplicativo politicamente correto. Obedecerei.

Com raiva de ter precisado disso.

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