Denise Fraga

É atriz e autora de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato Falado" (ed. Globo).

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O cerne do cenho

Não morro de amores por minhas rugas. Tampouco as odeio. Foram aparecendo em meu rosto e até custei a percebê-las pois minha cara de espelho as disfarça muito bem. Acordo, olho no espelho, faço a cara e sigo pensando que ainda sou aquela. De vez em quando me assusto com uma foto, um espelho lateral ou a revisão de uma cena, mas, ainda assim, permaneço sem rugas na ideia de mim.

No espelho do camarim, as venho acentuando para o novo personagem. Franzo bem o cenho e sigo as linhas com um pincel com sombra marrom. E, de tanto sublinhar um dia após o outro as rugas do meu cenho, passei a contá-las.

Crédito: Ilustração Zé Vicente #ARSAO1001 DENISE

Descobri que são sempre as mesmas, quatro traços e um pontinho, quase um ideograma chinês. Entre as minhas sobrancelhas, o carimbo de anos da minha expressão. Se converso com alguém diante de um espelho, vejo o tal desenho aparecer várias vezes num vai e vem. O mesmo cenho franzido, o tal, o meu, único, capaz de ser reproduzido por mim agora numa folha de papel. Quando relaxo, uma frágil teia ainda permanece impressa antecipando o meu futuro com o ideograma gravado pra sempre na testa.

Passei a olhar as pessoas ali. No meio das conversas, vou me encantando com a sanfona criada pelas sobrancelhas de meus interlocutores. Indignados, eloquentes, surpresos, emocionados, muitas são as formas que usam para acionar seus ideogramas particulares.

Alguns criam desenhos curiosos, quase uma estrela, quase uma flor. Mas todos são pontos de interrogação, sôfregas tentativas de compreensão.

Enganava-me. Um cenho franzido não é só sinal de zanga ou seriedade. Parece um curioso sistema de foco, como se a mente quisesse ultrapassar a fronteira da pele para capturar o que não consegue compreender.

Os mais velhos já trazem seus cenhos esculpidos e é bonito perceber como vai bem um cenho franzido com um sorriso. Uma expressão múltipla, complexa, resultado de anos de indignação, preocupação, tantas tentativas de compreender a existência que agora, congelados, são capazes de conviver com um sorriso placidamente. É mesmo um desperdício dar uma injeção de botox num lugar de tanta riqueza. Desisto.

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