Denise Fraga

É atriz e autora de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato Falado" (ed. Globo).

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O que os ouvidos ouvem, o coração sente

Era batata. Eu acordava, abria a porta do quarto e lá estava ele regendo sua caixa de som. Meu pai queria ser maestro. Foi contador. Nunca estudou a música que tanto ama, mas empunhava um lápis à guisa de batuta e nos acordava aos domingos de manhã comandando um poderoso Tchaikovsky nas caixas do três em um. Talvez por isso não tenha conseguido que cultivássemos nosso gosto pelo repertório clássico. Achávamos chata a música do papai. Dali a algumas horas, as caixas seriam devolvidas ao seu verdadeiro dono, o Rei Roberto, que praticamente morava ali dentro. Das caixas e do coração de minha mãe. Se separaram. Não só por suas diferenças musicais.

Eu era adolescente e meu pai passou, então, a nos buscar para passear nos fins de semana. Sem ter ideia do que poderia ser outra coisa divertida a se fazer, nos levava a óperas e concertos. Foi aí que o entendi. Na verdade, foi aí que o conheci. Ele e um pouco de Mozart, Bach, Verdi, Puccini e outros populares da música erudita. Passei a gostar do som que me acordava aos domingos e um tanto mais de meu pai. Abri meus ouvidos e a música entrou me abrindo o coração.

Crédito: Ilustração Zé Vicente

É um mistério, ponto. A música clássica não recruta a razão para nos tocar a alma. Narra e conta através de um alfabeto de sons e pode nos fazer chorar sem que saibamos por quê. É arte em sua forma pura.

Há uma cena linda no filme "A Vida dos Outros", em que um espião da RDA passa dias com fones de ouvido no sótão de uma casa à escuta do casal suspeito. Um clássico é colocado na vitrola e ele vai às lágrimas. Até os brutos se rendem a uma sonata de Bach. Difícil é vencer a velocidade dos dias e parar para ouvir.

Apesar de meu pai, sou menos assídua do que gostaria às salas de concerto. Resolvemos, então, fazer uma assinatura da Osesp para ordenar os encontros com nossa alma. No último concerto a que fomos, constava uma obra de Scriabin, um compositor do qual eu nunca tinha ouvido falar. Não quer dizer nada, conheço muito pouco e sempre atribuo nomes estranhos do programa à minha ignorância. Pois o tal Scriabin me pôs de volta menina, sentada de olhos arregalados na plateia, com o desconhecido a me fisgar o coração. Como dizia meu pai: há que esticar os ouvidos.

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