Denise Fraga

É atriz e autora de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato Falado" (ed. Globo).

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Nós não queríamos voltar no tempo

A série terminava com o casal deitado na cama. Ele perguntava pra ela:

— Você queria voltar no tempo?

Ela pensava um pouco e dizia, cheia de certeza:

— Não.

Tinham vivido ótimas coisas juntos, os anos tinham passado velozes entre altos e baixos, não eram mais um casal apaixonado e tórrido, os filhos cresceram e saíram de casa, ela não estava lá muito confortável com isso, mas simplesmente não queria voltar no tempo.

Os créditos finais começaram a rolar enquanto eu olhava sem foco para a tela percebendo que eu também não. Também eu não queria voltar no tempo. Não quero. Acho que minha curiosidade pela estrada ainda impede o meu desejo pelo retorno.

Fiquei espantada, confesso. É fácil querer voltar no tempo quando se viveu bons tempos. E posso dizer que vivi, graças a Deus. Sorri sozinha, aliviada com meu estado de paz com o tempo.

Mas, na verdade, gostaria de pequenas congeladas. Sinto demais a velocidade dos dias, quase posso ouvir o ciclone frenético que me atira repentinamente em mais um Natal. Me sinto uma meia no ciclo máximo da máquina de lavar. Passo os dias na janela de um trem bala tentando perceber os detalhes dos quintais fugidios. Não queria voltar no tempo, mas ter o poder de esgarçá-lo enquanto passa. Abrir lacunas de câmera lenta em alguns momentos para ao menos me iludir com a sensação de captura, de assimilação da vida, de plenitude.

Talvez venha desse vertiginoso trem bala o motivo do turbilhão de gente fotografando os segundos por aí. Será que veem as fotos? Ficam olhando pra elas tentando destrinchar os detalhes da vida ali capturada? Eu, raramente. Fotografo mais do que antes, como todo mundo, mas também minhas fotos acabam lançadas no ciclone como pequenos cristais espatifados misturados à vida líquida.

Li, dia desses, que dentro de toda pessoa de 70 anos tem uma de 35 tentando entender o que aconteceu. Pura verdade. Às vezes, paro atordoada com os olhos perdidos na barba do meu filho. Vejo a estrada percorrida, as tantas paragens, o tempo tatuado no tônus da minha pele e na raiz dos meus cabelos. Mas, mesmo assim, ainda assim, não desejo voltar.

Só pode ser obra dela. Da minha menina de 25, que mesmo não entendendo o que aconteceu, prefere buscar a resposta seguindo adiante.

Crédito: Zhu Xiang/Xinhua Trem bala chinês
Trem bala chinês

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