Denise Fraga

É atriz e autora de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato Falado" (ed. Globo).

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Como mudar a lei para os que fazem as leis?

Estive na casa dela. Era verdade. Havia papéis colados por toda parte. Da cabeceira da cama ao espelho do banheiro, da tela do computador à coifa da cozinha, transitava-se por um mosaico de termos jurídicos, leis, cláusulas e verbetes que precisavam entrar na sua cabeça. Depois de ser demitida, minha prima despediu a empregada, fez um trato com o marido para que ele arcasse com as despesas da casa e mergulhou alucinada estudando para prestar um concurso público. Faz cursinhos pela internet, frita bifes enumerando leis e lava a roupa da família sem tirar os olhos dos tais papeizinhos. Não vai aos aniversários e quase não sai de casa afogada em um mar de apostilas e post-its. Não tem tido muito resultado: em mais de dois anos dedicados às leis, o máximo que ela conseguiu foi acumular esperança em listas de espera. Virou uma fera nas leis, é craque no assunto a ponto de responder a consultas da família como se fosse uma advogada, faculdade que nunca fez. Mas, a cada novo concurso, só uma nova lista de espera.

Minha prima não procura um novo emprego com medo de ser mandada embora de novo e não consegue parar de estudar e tem pena de jogar fora todo o seu esforço ainda dando metade do seu possível novo salário para alguém fazer o que ela faz mergulhada em seus papeizinhos.

No último domingo, foi seu aniversário. Já tinha tomado umas cervejinhas quando atendeu a meu telefonema. Chorava no telefone. Tinha ido às urnas como todos nós, mas anulado seu voto com raiva.

— Por que eu tenho que provar tanto conhecimento e capacidade para conseguir uma merreca de um empreguinho público e sou obrigada a votar em gente que não tem um mínimo de preparo para o cargo que vai ocupar?!

Apesar da mágoa, da cerveja e de saber que minha prima quer prestar seu concurso muito mais pela estabilidade do serviço público do que por vontade de servir à comunidade, seu desabafo ficou ecoando em meu ouvido. Fiquei pensando no que é ter preparo. Talvez, para entrar na política, o cidadão devesse ter no mínimo uma faculdade. Talvez, porque não podemos negar que existem por aí casos de lideranças natas, pessoas que de tanto se comprometer com o coletivo, lutar nobremente por suas comunidades, acabaram se tornando seus melhores representantes, muitas vezes, sem sequer ter cursado o fundamental. O que nos garantiria candidato razoáveis? Seria o caso destes senhores, com ou sem faculdades, pregarem papeizinhos nas paredes de suas casas para estudar os nossos interesses e prestar um concurso para candidato? Seria uma peneira mínima? Ou seria a própria eleição o concurso em que nós somos os juízes? Estamos, por nossa vez, preparados como juízes?

Sinto uma grande tristeza ao ver o enorme percentual de abstenções e votos nulos no primeiro turno desta eleição. O que fazer com esta falta de fé em quem pode nos representar? Como mudamos as leis para os que fazem as leis? A quem recorremos? Será o caso de perguntar para minha prima?

Crédito: Alan Marques 03.out.2014 / Folhapress

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