Denise Fraga

É atriz e autora de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato Falado" (ed. Globo).

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Prefiro queimar a língua a comer este prato frio

Vou comprar um despertador. Acordei com um Trump na cara. Um balde de água fria quase físico. O celular ainda não tinha tocado, fui fazer um xixi, resolvi dar aquela checadinha do quanto de delícia eu ainda teria debaixo das cobertas e os preciosos quarenta minutos se dissolveram imediatamente em insônia angustiante.

"EUA elegem Trump!" - gritava a tela do meu celular. Quem dorme com essa? Me revirei na cama com o peso no peito. Eu não achava possível. Me senti uma tonta, uma ingênua. Não achava verdadeiramente possível. As pesquisas até apontavam o crescimento das possibilidades do cidadão, mas eu assimilava tudo como um roteiro cinematográfico, uma nova série a me pregar no sofá, nunca uma realidade. Achei que não chegariam a isso. Achei que não chegaríamos a isso. Na verdade, não achava que tudo poderia chegar ao que tem chegado. O que anda acontecendo? Que tempos são esses? Levantei da cama para entender os tempos.

No WhatsApp, uma avalanche de mensagens que diziam "Não acredito! Muito triste! É o fim do mundo!" logo se misturavam aos "kkk" para os memes velozes. Como a Estátua da Liberdade, eu também queria cobrir meu rosto. Ao menos fechar os olhos para tentar entender como um homem com aquele discurso é mesmo eleito presidente da maior potência do planeta. Senti medo.

Mudo o aplicativo para ligar o rádio –adoro rádio, gente falando ao vivo– mas logo sou interrompida pela mensagem de um amigo que me pedia um vídeo de parabéns para outro amigo que fazia aniversário.

– Vai ter festa? - pergunto.

– Não, só os vídeos mesmo.

– E o Trump, hein?

De resposta, um solitário emoji de um macaco que, como a Estátua da Liberdade, também tapava seus olhos.

Resolvo abrir os meus. Preciso entender. Volto ao rádio: informações sobre o trânsito. Santo Deus! O Donald Trump é o novo presidente dos Estados Unidos! Aquele que fala em construir muros! É ele que vai lidar com o Putin! Quero prestar atenção!

Minha mãe me liga: minha tia morreu. Caio no choro, culpada por chorar junto com a tragédia familiar minhas lágrimas de âmbito mundial. Abro o grupo da família para me solidarizar à dor e vejo dois únicos posts: a Estátua da Liberdade abraçada ao Cristo Redentor e um cachorrinho dançando, rodeado de corações, desejando bom dia. Bom dia?! E a tia?! E o Trump?!

Para! Espera! Não estou entendendo nada! Me deixem prestar atenção! Quero tentar entender. Mas, por favor, não me roubem o susto, não aplaquem minha vontade de gritar, não digiram por mim. Prefiro queimar a língua a comer este prato frio.

Quero ver a reação primeira, o momento indigesto, o acontecimento antes do processamento. Quero ver o vermelho da bofetada que recebi esta manhã antes que alguém lhe ponha panos quentes, antes que entre no processador da mídia, dos cientistas políticos, dos explicadores do mundo. Quero que alguém me dê a mão agora, me telefone neste momento, nesta mesma manhã onde se acordou em pesadelo. Quero viver junto o fato, antes da análise, antes dos memes, dos emojis, da morte.

Vou comprar um despertador antigo. Digital e já antigo. Que me acorde com um bip romântico, sem letras ou imagens. Que me dê tempo para tomar um café antes que o dia me atropele já digerido e decomposto em análises.

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