Nascido na Itália, veio ainda criança para o Brasil, onde fez sua carreira jornalística. Recebeu o prêmio de melhor ensaio da ABL em 2003 por 'As Ilusões Armadas'. Escreve às quartas-feiras e domingos.
O século 21 está atolado no 19
Andressa Anholete/AFP | |
Remoção de corpos em Alcaçuz (RN), no último domingo (15) |
É muito provável que mais da metade dos brasileiros ache razoável que integrantes de facções criminosas assassinem inimigos em brigas de presídios. Essa suspeita ampara-se no fato de que, há poucos meses, 49% dos entrevistados pelo Ibope se declararam favoráveis à pena de morte. (Em 2010 eram 31%.)
Essa questão faz parte da agenda do século 19 e o Brasil politicamente correto do século 21 finge não percebê-la. A sociedade cosmopolita, globalizada, nada teria a ver com o país dos presídios lotados, milícias e tráfico infiltrado no aparelho de segurança dos Estados.
O governo de Michel Temer, como os de seus antecessores, lida com a questão da segurança manipulando dois truques destinados a empulhar a plateia. A primeira é a síndrome da reivindicação sucessiva, muito ao gosto dos burocratas que gostam de apresentar uma agenda futurista que lhes permite não fazer o que devem.
As facções criminosas que estão nos presídios só poderiam ser contidas com bloqueadores de celulares. Instalados os bloqueadores, será necessário satélite para vigiar a fronteira, e assim por diante. (Presos de Manaus denunciavam a venda de alvarás de prisão domiciliar.)
As cadeias estão superlotadas porque prende-se demais e em vez de botar pra trabalhar quem nunca trabalhou, defende-se a mudança na legislação penal.
A síndrome da reivindicação sucessiva atinge outras áreas. Por exemplo, não se podia regularizar a situação de um terreno na periferia porque a região não tinha esgoto, e não tinha esgoto porque não estava urbanizada. À falta do futuro, o trabalhador não conseguia (e ainda não consegue) legalizar seu lote.
Ao truque da reivindicação sucessiva junta-se a síndrome da responsabilização regressiva. O campeão dessa mágica vem sendo o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes.
Sempre que pode, o doutor lembra que a situação dos presídios resulta de uma crise antiga, secular, cuja origens está nos tempos coloniais. Tudo bem, a responsabilidade é de Tomé de Souza.
Nada a ver com os governos de José Sarney, Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma, todos apoiados pelo atual presidente, Michel Temer.
O doutor Moraes é um homem do seu tempo. Atento às sutilezas do vocabulário, sempre que fala em "homicídio", acrescenta a palavra "feminicídio". No mundo do politicamente correto, lixo é "resíduo sólido" e não se deve buscar a regeneração dos delinquentes, mas a "ressocialização" dos presos. Tudo seria uma questão de palavras que não fazem mal a ninguém, se na fantasia de modernidade e cosmopolitismo não se escondesse o atraso.
Finge-se que tornozeleiras, satélites, radares, censos e mudanças pontuais nas leis podem resolver o problema das prisões brasileiras. Eles resolvem o problema da ocupação do noticiário, nada mais que isso.
O que há de mais dramático nessa grande representação é que boa parte da plateia que se pretende iludir está em outra faixa de onda, achando que massacres de presídios onde facções se matam são uma simples limpeza social.
Se milhões de brasileiros acham que massacres fazem bem à sociedade, a primeira coisa que se pode fazer para reverter essa situação é desligar a máquina de propaganda e empulhações. Pode ser pouco, mas ajuda.
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