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fabrício corsaletti

 

22/07/2012 - 02h30

Angústia

DE SÃO PAULO

- Você é uma coisa preciosa, você é uma névoa preciosa, você é uma lancha preciosa, você é uma janela vermelha preciosa, você é uma sósia de si mesma preciosa, você é uma pista de gelo preciosa, você é uma camiseta de renda preciosa, você é uma nuvem sem garras preciosa, você é uma bandoleira
cigana preciosa, você é uma ânsia de vômito preciosa, você é uma canoa de esquimó preciosa.
- Para com isso, meu.
- Você é uma girafa em miniatura passando debaixo da minha perna enquanto escrevo.
- Tá me zoando?
- Seu cabelo lucipotável vale mais que mil poemas.
- Cara, não pira.
- Você é uma coisa preciosa, você é um sorvete incandescente.
Você devia ter passado a infância sentada na carteira ao lado da minha, devia ter sido minha colega de escola e, no recreio, devia ter me oferecido um pedaço do seu sanduíche.
- Que bonitinho.
- Vou cortar minha barriga num lugar que não dói muito; um amigo médico me ensinou. Cê vai me ver no hospital?
- Isso é assunto seu, né?
- Quero ir pro Chile com você. Lá existem mais de 20 tipos de mariscos, sabia? Alguns são do tamanho de um sapato. Depois de uma semana frequentando o Mercado Central, eu te faria a Rainha do Vinho, com coroa de folhas de uva e dinheiro pro táxi até o hotel. O que acha?
- Brega. E semana que vem não posso.
- Um dia vou voltar a Carcassonne
e chorar. Vou visitar o túmulo daquela velha que falava espanhol e recitou versos de Lorca pra mim. Lerei Lorca e Blas de Otero pra ela. E levarei flores. Serei sincero de novo.
- Faça isso.
- Se os cachorros são livres, por que nós não somos? Se os cachorros correm soltos por aí, por que eu não consigo?
-...
- Às vezes penso em sair de São Paulo. Mas fora daqui não tenho nem a minha angústia.
- Sinto muito, preciso desligar.
- Você é uma coisa preciosa. A sua boca lembra um banjo. Você conhece os astronautas. A sua pele é chandeluda.
(Cê bebe leite num bistrô da lua.)

Ilustração Guazzelli
fabrício corsaletti

Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, Fabrício Corsaletti é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

 

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