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fabrício corsaletti
Manhã
Levanto às cinco da manhã, lavo o rosto, tomo café, como uma torrada com manteiga e ligo o computador pra escrever. São 5h20 e o sol ainda não nasceu. Dormi cedo ontem, depois da novela. Portanto, não é nenhum sacrifício acordar a essa hora.
Pelo contrário, é um prazer. Um prazer real, tátil, como a madeira dessa mesa que comprei há alguns meses e que é, de longe, o bem material mais precioso que já tive. Feita de madeira de demolição, é grande, sólida, cheia de sulcos aparentes e de manchas --e traz pra dentro da minha casa um pedaço da floresta a que pertenceu. Não finge ser a porta de uma Ferrari nem o chapéu de um bombeiro irlandês. É uma mesa. Apenas uma mesa. Mas uma mesa de verdade. E sobre ela apoio meu laptop.
Abro um arquivo de Word intitulado "rascunho", enquanto ouço o barulho de um ônibus subindo a Augusta. Nunca me incomodou barulho de ônibus. Pra ser sincero, até gosto. Talvez ele me dê a certeza de que estou na cidade, entre milhões de pessoas, de que não estou sozinho. Talvez ele me lembre um pouco, com sua constância e potência, essa mesa quieta e fiel.
Ilustração Guazzelli | ||
Como escrevo devagar, no momento em que inicio este quarto parágrafo o dia já nasceu. Veem-se, pela janela, uma faixa de luz rósea e outra alaranjada atrás dos prédios. Não há nada mais bonito que o amanhecer, nem menos "fake". Comparado a ele, o pôr do sol parece um suvenir da 25 de Março. Mesmo o pôr do sol em Ipanema. Além disso, no pôr do sol não há leveza --àquela altura do dia o bom humor já se foi. Então o pôr do sol se torna um insulto. Quanto mais belo, mais insuportável.
De manhã, não. De manhã todo o drama se evapora, e o mundo se reinaugura. E enquanto o dia amanhece, eu amanheço com ele, sei o que as coisas são e que sou entre elas --indo entre o que vive, como no poema "O cão sem plumas", de João Cabral de Melo Neto.
Alguém (minha analista) me disse que o romancista italiano Alberto Moravia afirmou certa vez que tinha cinco minutos de lucidez por dia, e era a esses cinco minutos que ele se agarrava. Concluo, daí, que sou um cara de sorte, pois disponho em geral de duas horas e meia --das 5h30 às 8h-- de uma total debandada da neurose, e graças à descompressão que ocorre nesse intervalo consigo fazer meu trabalho e seguir em frente.
Depois o texto vai acabando, e tenho sede. Na cozinha, aproveito e faço outro café. Lembro que esqueci de tomar meu remédio de asma e vou até o quarto, aspiro a bombinha. Volto pra sala e, num momento de fraqueza, abro a caixa de e-mail. Devo, entre outras chatices, enviar urgentemente os dados da minha empresa pra secretaria de uma ONG franco-espanhola que me convidou a dar um depoimento sobre as relações entre literatura surrealista e o processo de conscientização do eleitorado brasileiro no sentido de uma neo-pecuária-sustentável pós-mensalão e bombardeios na Síria. Claro. Mas cadê a pasta com meus dados? Quando consigo encontrá-la, o telefone toca. É da TIM.
Fim.
Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, Fabrício Corsaletti é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.
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