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fabrício corsaletti

 

30/09/2012 - 03h00

Não são o que parecem

Meu pai tinha dado uma câmera de filmar (VHS) de presente pro pessoal da república da Vila Mariana, onde morei dos 20 aos 23 anos, e o Rafael Pellota, que trabalhava com cinema, passou a filmar tudo o que acontecia na casa. Filmava a gente dormindo, comendo resto de pizza de manhã, fumando maconha à tarde, fazendo churrasco, lendo, roubando cueca limpa da gaveta do outro, bebendo caipirinha de álcool Zulu (aconteceu só uma vez) adoçada com mel (que, depois descobrimos, era óleo de soja) quando, de madrugada, acabavam a cachaça e o açúcar.

Com o Neder, um dos agregados mais assíduos, ele fazia um programa de entrevistas à Jô Soares. O Neder entrevistava os moradores da casa e os amigos, e também atuava nos anúncios no intervalo do programa. Lembro de um em que ele tirava inesperadamente os tênis que estava usando e os segurava na altura do peito, enquanto enumerava as qualidades dos "tênis Sorocaba".

Ilustração Guazzelli

De vez em quando a gente assistia às gravações. Eu morria de vergonha da minha voz e do meu jeito e torcia, e ainda torço (que palavra estranha essa, "torço"), pra que com o tempo as fitas embolorassem numa sala úmida ou virassem pó num incêndio. A verdade é que ninguém sabe onde foram parar essas fitas, mas desconfio que aprendi uma coisa com elas.

Pra comemorar o aniversário do Conrado, demos uma festa. A menina por quem eu estava apaixonado apareceu. Meus amigos da faculdade também puderam ir. Nossos vizinhos estavam viajando e por isso não haveria problemas com barulho. Enfim, tudo prometia, e no dia seguinte (vamos pular os detalhes sórdidos) eu não tinha dúvidas de que aquela tinha sido "a melhor festa da minha vida". Na lombra boa de uma ressaca sem remorso, flutuei pelo domingo como o Buda, nosso peixe de estimação, navegava pelo aquário. E escrevi um poema que começava com este verso pretensioso: "A felicidade é um vilarejo destruído no sangue escuro do meu coração".

De noite, rachando um China in Box com o Rafael, vimos a filmagem do sábado. Então aquilo era o que, na minha cabeça, tinha sido um novo Woodstock? Pessoas paradas, segurando copos, sorrindo, às vezes levantando a mão desocupada no meio de uma conversa, num momento de maior entusiasmo ou timidez. Alguém chapado sentava num canto e dormia. Um casal de namorados se abraçava. Um grupo dançava, civilizadamente, na porta da cozinha. Nada daquilo era extraordinário e poderia ter acontecido, digamos, na sede do Rotary Club. Fui deitar deprimido. De repente tinha entendido que boa parte do que eu julgava ser a realidade era apenas a minha viagem pessoal.

Em todo caso, isso não adiantou muito, pois não mudei meu modo de viver -só me senti mais quebrado. Passei os últimos dez anos sentindo falta dessas festas em que, eu imaginava, a comunicação era absoluta e os sentidos quase atingiam o êxtase. De lá pra cá, li uma penca de livros, mandei e-mails, telefonei, comi em excesso, bebi um apartamento e ouvi muita música popular. Não digo que não valeu. Mas também não foi tão divertido assim.

fabrício corsaletti

Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, Fabrício Corsaletti é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

 

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