Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.
Carcaça de animal desconhecido
E o pior é que lembro quando um amigo ironizou:
— Quer dizer que você vai instalar um varal dentro do quarto?
O papo girava em torno de como chegar aos 35 sem uma barriga obscena porém sem deixar de tomar chope de três a quatro vezes por semana.
Ilustração Guazzelli |
Confessei que tinha comprado uma esteira ergométrica. Todos riram, como se eu não tivesse nada a ver com exercícios físicos, como se tivesse estudado nesses colégios hippies (que inveja) onde meus amigos aprenderam a falar sobre os assuntos mais variados —de minimalismo húngaro a diretrizes de cidadania externa— e onde, me contam, o único esporte praticado era o pingue-pongue ornamental, isto é, um pingue-pongue lúdico em que não se marcavam os pontos a fim de não estimular a competitividade entre os alunos.
— Se liga, maluco! Fui campeão estadual de vôlei — esnobei.
Foi aí que um deles mencionou o lance do varal. Apostava que em três meses eu não usaria mais a esteira pra queimar calorias e sim pra pendurar toalhas molhadas, calças e camisetas sujas.
Passei os meses seguintes numa luta diária pra não desanimar. Toda tarde, depois do trabalho e antes do bar, eu sintonizava a TV num canal de notícias, montava na esteira e me sentia ótimo, conectado com o mundo, embora não fosse capaz de explicar que mundo era esse.
Em seis meses perdi cinco quilos; os amigos se espantaram; eu estava orgulhoso. Até que, do nada, a esteira não ligou mais.
Deus do Telemarketing, dai-me paciência e fazei com que o caminho da salvação seja certo, sem linhas tortas, orei enquanto ligava pra loja que me vendeu o produto.
Na loja disseram que eu tinha que procurar a assistência técnica e na assistência técnica me mandaram de volta pra loja, porque a garantia em casos de supercápsulas pré-maturadas com descabelamento à direita etc.
Liguei pro Antonio Prata, o rei da crônica e da corrida e, nas horas vagas, mecânico amador, que prometeu vir no sábado seguinte me ajudar. Mas no sábado ele teve um contratempo e esse contratempo recém completou dois anos.
De lá pra cá considerei me matricular na natação, no futebol, na ioga e no circo. Acabei optando pelo pilates e por caminhadas ao ar livre e poluído do bairro.
O fato é que até ontem à tarde eu tinha esquecido que tinha uma esteira dentro do quarto. Quando a vi, levei um susto: parecia a carcaça de um animal desconhecido; um cabideiro jurássico asfixiado sob tecidos pestilentos; um carro alegórico abandonado no fundo do barracão durante a ressaca do Carnaval que passou.
Gastei o resto do dia observando desconfiado cada objeto do apartamento. Como se procurasse um segredo. Não: como se tivesse criado coragem pra ouvir uma notícia fatal, que amargaria 2014 e talvez parte de 2015.
E então o telefone tocou.
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