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fernanda torres

 

03/08/2012 - 03h00

"piauí"

Gosto muito de ler a revista "piauí". É mesmo um milagre que alguém tenha tido a pachorra de criá-la, e de maneira tão competente.

No número 70, na edição do mês de junho, o posfácio de Mario Sergio Conti para a reedição de seu livro, "Notícias do Planalto", explica, de certa forma, o porquê do espanto com a revista.

Mario traça um mapa da escalada do marketing na política e na imprensa desde a eleição de Collor até hoje. Um dos efeitos colaterais desta influência no jornalismo seria a proliferação de colunas e cronistas, em detrimento das reportagens investigativas, mais complexas, profundas e lentas de serem feitas.

A observação calou fundo em uma cronista amadora como eu.

A cultura de massa triunfou de maneira tão acachapante, que arriscar uma publicação com letras miúdas, poucas e boas fotos e longas dissertações sobre temas não tão urgentes, é como remar contra a maré com a vontade de um suicida. Não é à toa que João Salles, seu fundador, torce pelo Botafogo.

A "piauí" era uma causa perdida, fadada ao ostracismo editorial.

Hoje, suas páginas exibem grandes anunciantes, e a publicação, notadamente, virou hábito para uma parcela pequena, porém significativa, de leitores. Nada comparável à fartura das encadernações de moda, decoração e culinária, mas, ainda assim, um feito.

Em uma época em que ser marginal é mais sinônimo de incompetência do que de heroísmo, a revista conseguiu se popularizar de forma indireta.

Na contramão das regras de mercado, acabou pautando a própria imprensa. Fez isso com Dirceu, Dilma e Ricardo Teixeira; ao mesmo tempo que selecionou artigos surpreendentes, como o do embate darwinista sobre o altruísmo, o da debacle econômica islandesa e o sobre a dinâmica dos fractais.

A massificação da arte e da informação seduz quem produz e consome peças, novelas, livros, jornais e filmes. As pesquisas de opinião dominam o comportamento, a moral, a política e o entretenimento. Cada vez mais, a balança para medir o valor de uma obra é a sua penetração no grande público e o retorno financeiro. É preciso reconhecer o valor de quem fura o bloqueio.

Em um conselho da "piauí", do qual fiz parte por um período, Luciano Huck, também conselheiro, deu uma solução lapidar para o balanço da revista que, naquele momento, insistia em se manter no vermelho. Ele sugeriu a criação de uma segunda revista, a "ceará", repleta de celebridades, fotos, escândalos, receitas e fofocas. A "piauí" seria mantida com o lucro da "ceará".

Luciano fez, com poucas palavras, o raio-X da encruzilhada econômica da alta cultura, do alto jornalismo, da música clássica, do teatro, das artes plásticas, do balé, dos museus e da cultura dita erudita. É preciso produzir chiclete para assar brioches.

O ser ou não ser de qualquer intelectual praticante é produzir algo que agrade a gregos e troianos, que instigue as cabeças pensantes, ao mesmo tempo que alcance as multidões. Esse, não há dúvida, é o milagre de Shakespeare, das tragédias gregas e de grande parte da música popular brasileira, mas não é todo dia que acontece.

A saída ideal é a educação. A "New Yorker" jamais venderá o que os tabloides vendem, mas gente suficiente a consome para que ela continue existindo. Desconfio muito da apologia dos grandes números, da glorificação do "Big Brother", como se o programa fosse um estudo antropológico do comportamento humano. Não é. Ou é, na medida em que tudo é, mas não vale um parágrafo de Jared Diamond.

Existe uma condenação velada à erudição. A exaltação do popular é um posicionamento inatacável. Discordar dela, mesmo que parcialmente, é como discursar em favor da monarquia em meio à Revolução Francesa.

Sinto falta de Benedito Ruy Barbosa e muito me toca a influência de Flaubert, Vitor Hugo e Eça de Queiroz na trama das nove de João Emanuel Carneiro. Reconheço em Harry Potter o valor de Cinderela, mas ainda considero "Providence" um dos maiores filme que já assisti.

A "piauí" galgou seu lugar nos revisteiros dos mais informados banheiros e consultórios médicos do país. No dia que virar uma alternativa xiita nos salões de cabeleireiro, terá feito uma revolução.

fernanda torres

Fernanda Torres é atriz e colunista da Folha desde 2010. Escreve aos sábados, a cada duas semanas.

 

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