Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Fernanda Torres

A cobertura da "TV Folha" dos Yellow Blocs num camarote VIP da Copa do Mundo é chocante. O ingresso elevado dava direito a assistir ao jogo no telão, consumir um bufê farto e desfilar o Rolex sem o receio de "levar uma facada no baço", como confessa um dos convivas.

O medo o afastou das comemorações populares, mas a alternativa se mostrou algo frustrante. Obrigado a enfrentar filas, o rapaz compara o atendimento precário às dificuldades do povo de ter acesso à saúde e à educação no Brasil.

Uma patricinha indignada, que pagara R$ 1.000 pelo direito exclusivo, reclama da convivência com quem pagou menos. Outra, com batom escarlate, defende que Dilma deve mais é tomar no cu.

O festival de horrores fundamenta a tese, que me recuso a aceitar, de que todo empresário é ladrão, toda dondoca é racista e o problema do pobre é o rico. É o retrato do que se convencionou chamar de elite branca, da qual, pelo censo populacional, faço parte.

Como se não bastasse, sou artista. Dependo das benesses das leis de incentivo para sobreviver. Ou bem comungo da arte como entretenimento, ou mamo nas tetas. Viva-se com isso.

Meus pais criaram filhos que pertencem à elite branca no teatro, num tempo em que, apesar das diferenças, havia independência econômica e uma busca comum pela identidade do país.

Reacionários e libertários comungavam da luta pela liberdade de expressão, criando um sentido de classe que os separava da burguesia.

Na TV, Roberto Marinho empregava os "seus comunistas"; escritores como Vianinha, Benedito Ruy Barbosa, Lauro César Muniz e Dias Gomes, que ajudaram a dar forma ao herói brasileiro.

Em "Terra em Transe", Paulo, o revolucionário, segurava um miserável pelo braço e ordenava: "Fala, povo!", mas os anos de subordinação impossibilitavam o cidadão de falar. Era dever da intelligentzia dar voz aos desassistidos.

Hoje, através da democracia da rede, os menos favorecidos prescindem do intelectual. MC Guimê representa a si mesmo, enaltecendo os bens de consumo no funk ostentação sem carecer de ninguém que o explique.

Mario Sergio Conti, numa entrevista com o MC na Globonews, perguntou se o rapper não achava sexista a ideia de que ter um carrão atraía mulher. O cantor deu uma resposta lapidar, para a qual não há iluminismo que sirva de antítese: "Olha, onde eu moro, é assim".

Os Racionais expressam a revolta social sem intermediários, Criolo mistura Nelson Gonçalves com rap por conta própria e a dança do passinho estrela o comercial da Nike.

A falta de um objetivo nobre desuniu o setor. Apoia-se esse ou aquele candidato por convicções pessoais, sem que se cobre de nenhum partido um programa consistente para a cultura.

Não temos representatividade no Congresso e parece impossível produzir uma agenda clara que defenda o interesse geral. Não à toa, a dependência do erário cresceu sem resistência.

Desprovida da missão redentora, resta à elite pensante dar conta de sua razão de existir.

No meu caso, os fracos dotes líricos me deixaram de fora da onda dos musicais e as letras surgiram como um horizonte promissor. Mas é no velho teatro —ofício que me criou e onde sou patroa de mim mesma— que o desafio de dar sentido à minha profissão se apresenta.

Minha mãe diz que, hoje, faz teatro de catacumba. Sem grandes estardalhaços, cenários, ou luxos de produção, ela tem produzido monólogos e se apresentado, primordialmente, em circuitos de periferia, como o dos CEUs, de São Paulo, e o das arenas de cultura, no Rio.

O monólogo, não é de hoje, tem me atraído mais do que qualquer outra forma de expressão teatral. Do Hamlet de Bob Wilson à vida íntima de Spalding Gray, dos vilões shakespearianos de Steven Berkoff à vingança de Tim Crouch, da nudez de "A Alma Imoral" à ignorância de Pedro Cardoso, da Simone de Beauvoir e do Nelson Rodrigues da Fernandona aos "Budas Ditosos" de João Ubaldo, nada me soa mais potente do que a presença solitária de um ator em cena.

Trata-se de uma experiência íntima, como a literatura; existencial, como a filosofia; e sacra, como a religião. A guerrilha móvel para tempos de crise.

O homem só. E a consciência que fala por si.

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.