Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

Aborto

Toda geração tem o seu. O da minha atendia pelo nome de Dr. Chaim.

Dr. Chaim mantinha um consultório no Leblon, e era para lá que as meninas iam cada vez que a liberdade recém-adquirida de trepar na adolescência acabava numa gravidez indesejada.

Ainda não existia a Aids, esse complicador.

Terminado o procedimento, as pacientes eram dispostas em cadeiras reclináveis, numa pequena sala comunal, à espera de que recobrassem os sentidos.

Um amigo enfrentou o dia fatídico e presenciou dois ataques histéricos na sala de recuperação. Assustadas com o peso e o caráter criminoso da decisão, as moças muitas vezes acordavam aos gritos da cirurgia.

Não conheci o Dr. Chaim, mas passei por dois abortos espontâneos e tomei a pílula do dia seguinte.

Em todas as ocasiões, senti algo parecido com dar um cavalo de pau num Fenemê acelerado. Uma vez fecundado, o óvulo se apodera do corpo, enviando ordens para o centro nervoso da gestante, a fim de garantir a imortalidade do DNA egoísta.

Indivíduo, desejo, livre arbítrio, tudo o que prega a cartilha de direitos civis passa para terceiro plano.

Vômitos, suadouro, depressão, medo, tristeza, vazio são alguns dos sintomas que experimentei.

Por isso, percebo algo falho nos slogans das campanhas pró-aborto, que afirmam que a mulher é livre para fazer o que quiser do próprio corpo. Uma gestação envolve, no mínimo, o parceiro, além de um misterioso terceiro elemento chamado embrião.

Não sei se há consciência no embrião, mas existe a vontade.

A defesa do direito ao aborto peca pelo tom libertário, assim como a da legalização das drogas, por vezes, parece esquecer da dependência trágica do vício.

É nesse ponto que a bancada conservadora se sobressai, ao se firmar como guardiã da vida, ignorando fato de que a imaculada pauta escamoteia o fracasso da política antidrogas e o mercado clandestino de aborteiros de plantão.

Sou favorável à regulamentação do aborto pelo mesmo motivo que defendo a legalização das drogas. Sua proibição acarreta mais danos do que benefícios à população.

Mas uma coisa é liberar a droga, outra é se libertar da droga. Uma coisa é legalizar o aborto, outra é controlar o sexo sem camisinha, é criar horizontes para crianças sem perspectiva de futuro.

Choca assistir ao encaminhamento de propostas ao Congresso que visam retroceder no direito ao aborto para mulheres vítimas de estupro, enquanto leis que restringem o comércio de armas se veem ameaçadas pelos interesses da indústria bélica.

É a lógica distorcida, tão bem definida em "Haiti", de Gil e Caetano, sobre o Papa que vê tanto espírito em feto e nenhum no marginal.

O aborto, no Brasil, esbarra em crenças e convicções inarredáveis; um embate sem solução, entre ciência e religião, para precisar o momento em que a intervenção cirúrgica maquia um assassinato.

Por ora, aprovar o uso da pílula do dia seguinte já diminuiria, e muito, o sofrimento de inúmeras mulheres que arriscam a saúde em clínicas ilegais.

O lobby dos fármacos, tão poderoso quanto o das armas, poderia exercer uma pressão maior sobre o plenário do que a retórica em torno da liberdade individual.

Pragmatismo econômico no lugar de ideologia. É triste, mas é a norma do século 21.

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