Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

Amor, ordem e progresso

No ato quatro, cena um, de "O Mercador de Veneza", o judeu Shylock justifica a cobrança de uma libra de carne, que levará à morte o cristão devedor Antônio, com o seguinte argumento:

"Alguns não suportam ouvir grunhir um porco; outros, ao ver um gato, ficam loucos (...) e a urina não retêm. É que a impressão, senhora dos instintos, vos faz odiar ou amar como apetece. Não podemos apresentar razão satisfatória da antipatia de um pelo grunhido do porco, da daquela pela vista de um gato, sendo força cedermos ao opróbrio inevitável de ofendermos, quando nos virmos ofendidos: de igual modo, não sei de outra razão, nem saber quero, se não for o ódio inato e a repugnância que Antônio me desperta e que me leva a persistir assim numa demanda tão onerosa. Dei-vos a resposta?"

Dia desses, acordei com a notícia de que estavam excomungando minha família e meus antepassados na rede, por conta da defesa do Ministério da Cultura feita por minha mãe.

Foi-se o tempo em que os artistas eram vistos como defensores do bem, do bom e do justo. As leis de incentivo à Cultura deram cabo da admiração.

O "fica, MinC" cresceu insuflado pelo "fora, Temer". Com a volta do ministério, quem aceitou dialogar com o Planalto foi tachado de oportunista, e os que insistem em negar o governo provisório enfrentam a ira dos pró-impeachment.

E toma-lhe chute, soco e pontapé.

A veiculação dos telefonemas de Sérgio Machado dá corpo às vozes pela impugnação do ex-vice. O time do pragmatismo econômico revida, esfregando os R$ 170 bilhões de rombo nas fuças do "volta, Dilma".

Eu comi o pão que o diabo amassou por estar alheia às novas diretrizes do feminismo. O raio-X da Câmara durante a votação do impeachment, que nos brindou com o elogio ao torturador Ustra e com a cusparada de Jean Wyllys em Bolsonaro, elucida a fúria das bacantes.

O baixo clero ganha força e independência. As bancadas do boi, da bala e da Bíblia representam uma fatia significante da população.

A atriz Bruna Linzmeyer foi agredida por ter assumido seu relacionamento com uma mulher, e Taís Araújo chamada de "criola" por sua posição contrária à extinção do MinC. Na avenida Paulista, uma professora defeca na foto de Bolsonaro.

"Carmina Burana" vira hino de repúdio a Temer, e o Capanema canta em uníssono "Odeeeeio você, Te-mer!" e "Êeeeeta, êta, êta, êta, Edu-ardo Cu-nha quer con-trolar minha buceta". O CD com os hits das ocupações promete sair em breve.

O desemprego cresce, os estudantes ocupam, o MST invade e a polícia endurece. O "homem cordial", que preferia o arranjo pessoal ao cívico, agoniza junto ao slogan interino "ORDEM E PROGRESSO".

A bandeira brasileira apagou a palavra "AMOR" da máxima positivista. Urge retomá-la, embora Sérgio Buarque de Holanda alerte:

"Todo afeto entre os homens funda-se forçosamente em preferências. Amar alguém é amá-lo mais do que a outros. (...) A benevolência democrática é comparável nisto à polidez, resulta de um comportamento social que procura orientar-se pelo equilíbrio dos egoísmos."

Descarrilhamos agarrados aos instintos mais primitivos. Ódio e amor se equivalem, atiçados pelo eterno oportunismo.

Estamos a léguas de distância de qualquer arranjo possível.

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