Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

Loucos

Crédito: Marta Mello/Editoria de Arte/Folhapress

Recebi cartas indignadas com meu artigo "Treblinka", perguntando de onde eu havia tirado a comparação estapafúrdia entre um presídio carioca e um campo de concentração nazista.

Ela saiu de uma passagem do livro do filósofo pernambucano Roberto Machado, "Impressões Sobre Michel Foucault", a respeito de sua amizade com o pensador francês.

Num jantar na casa de Foucault, Machado conhece Franco Basaglia, psiquiatra italiano que revolucionou o tratamento de doentes mentais, na Itália dos anos 1970, aprovando leis contrárias ao encarceramento de loucos.

Durante a ceia, o brasileiro elogia um filme francês sobre um asilo onde os internos dançam, cantam e pintam num jardim bem cuidado. Chocado, o italiano diz que é exatamente contra essas instituições que luta, não importa os bons tratos aos pacientes.

Em visita ao Brasil, Machado o leva para conhecer um manicômio mineiro, com doentes sujos, vivendo entre ratos e ingerindo comida podre. Horrorizado, Basaglia responde que aquele inferno nada tem a ver com seu debate na Europa.

Isso é o Holocausto, diz ele.

A afirmação não implica que os judeus foram perseguidos por serem malucos ou justifica as atrocidades de Hitler. A palavra "Holocausto" é usada como sinônimo da aceitação de condições desumanas, feita por parte da sociedade, aos que não são vistos como iguais.

E foi nesse sentido que usei o termo "Holocausto" para me referir ao sistema prisional brasileiro.

Os judeus alemães foram vítimas de um plano genocida de Estado. Mas muitos dos criminosos que, hoje, tocam o terror no Rio de Janeiro, ou cumprem pena nas prisões, foram crianças que cresceram em guetos sem educação, saúde e saneamento. Meninos que não se perderam apenas pela fraqueza de caráter, mas porque, vítimas do abandono, da corrupção e da inépcia das políticas públicas, foram cooptados pelo crime.

Essa opinião esbarra com uma convicção crescente de que bandido bom é bandido morto. Até há pouco, ela se restringia a uma parcela pequena de brasileiros favoráveis à pena de morte, que viam muito espírito em feto e nenhum no marginal. Mas a crença ganha força, alavancada pela falência econômica, ética e moral do país.

Podemos nos entrincheirar e xingar os que não veem o mundo com os mesmos olhos ou nos ouvirmos.

Almocei recentemente com um empresário muito bem-sucedido, um homem doce e trabalhador, cujo negócio gera milhares de empregos. Em 2018, ele pretende votar num presidente que libere o uso irrestrito de armas por civis.

"Os marginais estão armados até os dentes e a gente sem defesa", argumentou ele, "os direitos humanos só servem para passar a mão na cabeça de vagabundo", continuou; concluindo que "a prova de que o sujeito só é criminoso porque quer é a quantidade de gente honesta nas favelas."

Aconselhei-o a comprar uma metralhadora e construir bunker, porque um três-oitão de nada adiantará, quando o gatuno com uma AR-15 resolver assaltar o cofre. Mas não condeno o desespero de quem crê que se sentirá mais seguro com um revólver na mão, embora esteja convicta que isso só aumentará o número de homicídios.

O Brasil, hoje, é território de lobos, terra de ninguém, como tão bem explica o personagem de Benicio Del Toro no fim de "Sicario", filmaço de Denis Villeneuve, espelho aterrador dos nossos tempos. Confira.

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