Fernando Schüler

Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.

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Fernando Schüler

O ato que suspendeu a posse da ministra do Trabalho, Cristiane Brasil, alegou o descumprimento do princípio da "moralidade", inscrito no artigo 37 da Constituição. O raciocínio parece ser o seguinte: perder uma ação trabalhista significa uma imoralidade, pois agride a Constituição (que demanda moralidade). Logo, quem perde uma ação trabalhista não pode ser ministro. Quando li a notícia, logo me perguntei: esta nova regra servirá apenas para o Ministério do Trabalho, ou para qualquer pasta do governo?

Os princípios elencados no artigo 37 dizem respeito a toda a gestão pública brasileira, incluindo Estados e municípios. Isto significaria que qualquer pessoa que perder uma ação trabalhista deveria ficar impedida de assumir uma função pública? Fazer um concurso, por exemplo? Faz sentido permitir que alguém que agrida a moralidade pública permaneça no serviço público por 30 ou 35 anos? Há milhares de pessoas que perdem ações na Justiça do trabalho, todos os anos, no Brasil. Todas estas pessoas deveriam ser impedidas? Ou a regra criada no episódio da ministra Cristiane Brasil só vale para ela própria?

O artigo 37 elenca uma série de princípios da administração pública. "Legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência". Haveria um problema de "impessoalidade" na indicação de uma ministra ou secretária que é filha do presidente de um partido da base política ou que é simplesmente amigo do presidente? Agrediria o princípio da "eficiência" algum prefeito ou governador nomear alguém visto como "notoriamente incompetente"? E um secretário de transportes, numa cidade qualquer, que precisa cuidar do trânsito municipal, mas já bateu o carro três vezes, foi pego no bafômetro e perdeu a carteira, por pontos? Alguém diria que nada disso é tão grave como perder uma ação trabalhista. É possível, mas quem define isso, exatamente?

Talvez pelo gosto da filosofia, sempre me encantei pelo tema da subjetivação. Observe-se o debate recente sobre o indulto natalino. Em sua ação junto ao Supremo, a Procuradoria da República diz que o poder do presidente conceder indulto não é "ilimitado" e que o decreto de Temer seria uma "benemerência sem causa" e portanto sem fundamento jurídico. O argumento faz um apelo ao bom senso: vivemos um quadro de "crise orçamentária", não sendo razoável perdoar multas. Há um sentimento de "repulsa à corrupção" e um indulto dessa ordem passaria uma imagem de impunidade ao país. Excelente argumentação, com apenas um detalhe: na divisão de poderes estabelecida na Constituição, se trata de um juízo que cabe "privativamente" ao presidente da República. Quem sabe isso não seja importante. Como diria Roberto da Matta, podemos ir relativizando. Mas pode ser que haja um problema mais sério aí.

O fato é que vai se formando uma certa tendência na vida pública do país. Pra quem ainda se lembra, em fins de novembro, quando o Supremo deliberava sobre a restrição ao chamado "foro privilegiado", o fazia simplesmente com base numa livre interpretação da Constituição. Melhor: emendando ou acrescentando um artigo ao texto constitucional, que restringe o tipo e o tempo dos crimes alcançados pelo foro. A pergunta evidente, quase cansativa, é se esta não seria precisamente uma função do Congresso Nacional.

Há muitos pontos comuns nestas intervenções: elas são feitas em nome do bom senso e com ampla simpatia da opinião pública. Melhor dizendo: do humor público, em regra expresso na internet. Elas relativizam a regra do jogo por uma fila de boas causas. Elas "dão um jeito". O ponto é que a democracia é feita de regras, de atribuição de responsabilidades a cada agente institucional. Muitas vezes precisamos admitir que os agentes errem, exercendo suas prerrogativas, de modo que a tolerância a um erro sirva para garantir a permanência da norma. Instituições são feitas disso: permanência. Perde-se algo, no curto prazo, para que todos ganhem, no longo.

Mas há um outro caminho: a ideia de que, de atalho em atalho, podemos ir corrigindo a democracia. Em vez de submeter ao Congresso a mudança de uma lei ou mesmo de uma decisão executiva, podemos transferir sua correção, no cotidiano, à instância judiciária. É uma visão da República. Ela ganha seu poder de tutela. Talvez seja por aí que estamos caminhando, no Brasil.

Meu ponto: vai aí uma fragilidade de nossas instituições. Consagra-se a ideia de que dispomos de um sistema político incapaz, um Congresso lento para tomar decisões e um Executivo dado ao "desgoverno". Tudo parece corresponder perfeitamente à percepção que o senso comum tem hoje sobre nosso mundo político. A percepção é legítima. A pergunta a fazer é até que ponto nossas instituições devem se mover atendendo às intuições difusas e voláteis do senso comum.

Uma hipótese é que possa haver por trás disso tudo um estranho sabor de nossa "democracia digital". A pressão e o barulho permanente das redes sociais são a nova realidade, em boa medida desconhecida, de nossa democracia. Em um dia qualquer, na virada do ano, pareceu insuportável a gritaria em torno do indulto natalino, assim como aconteceu, dias depois, com a indicação de Cristiane Brasil, e ainda um pouco antes com o tema do foro privilegiado. É muito fácil achar que, de gritaria em gritaria, vamos encontrando o caminho da virtude, na democracia. E que tudo isso possa expressar uma ideia correta do interesse público para muito além das regras do jogo, que por vezes nos irritam profundamente. Desconfio que exista um problema aí.

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