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francisco daudt

 

02/10/2012 - 02h00

A culpa e o PIB

Dentre as cinco resistências ao tratamento analítico descritas por Freud, a mais curiosa é a reação terapêutica negativa. Ele ficava pasmo de ver que, quando alguns pacientes tinham uma expressiva melhora em suas neuroses, como decorrência da análise, algo de muito errado lhes acontecia.

Ora adoeciam, tinham acidentes, tomavam decisões catastróficas, mas, sobretudo, abandonavam o tratamento. "Pioram porque melhoram?" era a questão que intrigava o Professor. Depois de muita pesquisa, ele concluiu que algo neles se ressentia com seu novo bem-estar. Tinham culpa de se sentir bem.

Depois da Segunda Guerra, surgiu um acontecimento psíquico que trouxe luz àquele enigma: a síndrome do judeu sobrevivente. Um traço comum unia os que haviam escapado ao campo de concentração: não podiam ser felizes, pois eram assombrados pelos mortos, que lhes sussurravam na alma, "Aí, hein? Você, todo feliz, gozando a vida, e nós, viramos cinza, não é?" Ele, devastado pela culpa, fazia então a única coisa que lhe poderia dar alguma dignidade: buscava ser infeliz.

Isto está longe de se restringir àquele grupo étnico. Jogadores de futebol, que ganham fama e fortuna, afastam-se do subúrbio onde nasceram para desfrutá-las em áreas mais ricas, mas é comum que algo de muito errado ocorra, que se entreguem à dissipação, aos vícios, que entrem em decadência, que sofram de solidão, que se deixem explorar.

Houve um que abrigou de graça várias famílias por 11 anos, num prédio que comprara. Ao ser processado para dar pensão a uma de suas ex, passou a cobrar uma quantia irrisória de aluguel, como meio de pagar o estipêndio. Foi o bastante para que corressem aos jornais, acusando o jogador de egoísmo, de ter-se esquecido dos pobres, de sua origem, de trair o seu passado.

O mesmo ocorre com ganhadores de loteria. São raros os que mantêm seu dinheiro.

Minha motivação para este texto vem dos meus pacientes que sofreram da tal resistência. Você conhece a anedota que pergunta "quantos psicanalistas são necessários para que se troque uma lâmpada?" A resposta é: "Um só. Mas é preciso que a lâmpada queira muito ser trocada".

Segue disto que, se uma pessoa é capaz de achar que há algo errado consigo, se é capaz deste grau de reflexão, em vez de culpar os outros, as chances de que seja uma pessoa de destacada inteligência são grandes. Ora, a mãe natureza é sabidamente injusta e desigual quando se trata da distribuição desta qualidade. A maior parte da humanidade é principalmente reativa aos acontecimentos. Os reflexivos, contempladores e planejadores formam uma triste e solitária minoria, a desgraça de sua graça é ser difícil encontrar interlocutores.

Alguns clientes se descobriram muito cedo portadores dessa anomalia congênita. Uma delas se lembra de aos seis anos se perguntar, "O que eu estou fazendo no meio dessas pessoas?", referindo-se à própria família. Não deu outra. Passa a vida se sentindo levemente culpada por se destacar, e seus empreendimentos, a despeito de seu talento ímpar, nunca avançam muito.

Nestes tempos em que o senso comum vai absorvendo como verdade que "pobre é bom; as 'zelite' é mau", o sentimento de culpa ligado à prosperidade tende a crescer, e isto influencia o PIB do país (para baixo). É a herança maldita do Stalin, que, nas palavras de Trotsky, "fez da privação uma virtude". Que tal as esquerdas começarem a olhar para a China?

fdaudt2@gmail.com
www.franciscodaudt.com.br

francisco daudt

Francisco Daudt, psicanalista e médico, é autor de 'Onde Foi Que Eu Acertei?', entre outros livros. Escreve às quartas, a cada duas semanas.

 

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