Psicanalista e médico, é autor de 'Onde Foi Que Eu Acertei?', entre outros livros.
Não existe em nossa espécie altruísmo que não espere nada em troca
15.mai.1997/AFP | ||
A missionária madre Teresa de Calcutá (1910-1997) |
Dentro de nossas cabeças mora um contador. Um não, vários. Todos eles zelam pela troca que achamos justa, e troca justa é um dos assuntos mais importantes da nossa vida, qualquer coisa fora dela nos causa raiva: toda raiva provém do sentimento de injustiça, e é a raiva o motor que será usado para buscar corrigi-la. A raiva é, pois, mãe da justiça.
Quanto aos contadores: há os cruéis e explícitos, que vigiam se o preço cobrado está extorsivo ou não; há os politizados, que querem derrubar autoridades que não foram fiéis aos nossos votos...
E há os gentis. Esses lidam com a contabilidade mais delicada de nossas vidas: a que envolve afeto. Quando os bons sentimentos entram em pauta, a espécie humana é capaz de mostrar sua face mais bela: a altruísta. Queremos o bem de quem amamos. Essa gente nos desperta uma generosidade insuspeitada, uma vontade de agradar, de presentear, de fazer sorrir, que a nada se compara. Damos-lhe prazer e atenção; queremos saber de suas histórias e de suas dores; ficamos até felizes com sua felicidade (habitualmente a felicidade alheia nos causa inveja, que é fruto de um sentimento de injustiça distorcido: "Por que eles, e não eu?").
Mas não se iluda: o contador está alerta. Quietinho, disfarçado, gentil... mas alerta. Não existe em nossa espécie altruísmo que não espere nada em troca. Até mesmo são Francisco de Assis, o ícone da generosidade, dizia que "é dando que se recebe; é perdoando que se é perdoado". Ou seja, o santo esperava troco! Aquela pessoa mais amada, que no entanto só olha para o próprio umbigo, só quer ser ouvida e nunca ouve, só fala de si mesma até se (e nos) cansar, que não se engane: sua batata está assando. Em fogo brando, mas está.
É que no caso das relações afetivas a linha de crédito é mais elástica: nossa capacidade de tolerância é muito grande. Só existe um caso que se aproxima do amor incondicional, o que temos pelos filhos. Tirando esse –que vai ficando parecido com o amor pelos amigos à medida que eles crescem–, o dia do acerto de contas chega, e ele dificilmente será bem sucedido.
Por causa do problema da cobrança: quem cobra sexo, quem cobra amor, recebe no máximo favor, e esta não é a moeda de troca que queremos.
Resulta que muitos relacionamentos adoecem por encrencas contábeis: não havendo troca justa, e não se podendo acertar as contas (muitas vezes é por falta de capacidade do outro: como esperar amor e atenção da parte de um narcisista, ou como provar seu amor a um ciumento paranoico?), a melhor opção seria o afastamento.
Mas pode ser tarde demais, se a amargura da injustiça das trocas já se transformou em sadomasoquismo, mesmo que sutil, o amor vira vício: um se assumindo vítima do outro (é a parte masoquista), enquanto deixa claro aos demais o monstro que o parceiro é (a parte sádica).
Portanto é melhor ter em mente como funcionamos: esse negócio de dar e não esperar nada em troca é puro autoengano. Mesmo as pessoas de baixa autoestima devotas a quem amam se ressentem do menosprezo que recebem.
Cajueiro não dá banana: é melhor avaliar bem antes de investir muito.
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