Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 

hélio schwartsman

 

17/05/2012 - 07h07

Órgãos à venda

Na semana passada, escrevi dois artigos para a edição impressa da Folha em que defendi a criação de um mercado de órgãos humanos. O primeiro foi para lançar a ideia, e o segundo, para defender-me das acusações que o texto inicial engendrou. O assunto é polêmico, complicado e cheio de nuanças. É, portanto, um tema propício para a coluna online, onde não há limitação de espaço e os argumentos podem ser desenvolvidos de modo a comportar a complexidade das coisas.

Minha tese central é a de que pagar os doadores, embora nos cause uma certa repugnância inicial, ajudaria a aumentar a oferta de órgãos e a qualidade de vida de pacientes (ampliando, portanto, o bem-estar da sociedade) sem constituir uma verdadeira violação moral.

Vamos agora aos arrazoados e às evidências.

Desde que teve início a era dos transplantes de órgãos, nos anos 50, as técnicas não deixaram de evoluir. Com o advento de drogas imunossupressoras de melhor qualidade, enxertos deixaram de ser um procedimento experimental para tornar-se uma terapia salvadora, eficaz, que proporciona ótima sobrevida e excelente relação custo-benefício.

Pela literatura internacional, as despesas totais de um transplante de rim --o de maior demanda-- equivalem às de apenas três anos de hemodiálise. Como a sobrevida média do transplantado hoje é superior a 15 anos para grande parte dos pacientes, o procedimento representa na verdade uma baita economia para países como o Brasil, onde a esmagadora maioria dos transplantes e das diálises são custeados pelo Estado. É, portanto, do interesse de todos aumentar a oferta de órgãos. Ela vem crescendo nos últimos anos, mas a fila permanece teimosamente grande. No caso do rim, quase 30 mil brasileiros aguardam uma doação.

Para o doador, existem obviamente perigos. É sempre mais seguro não ser submetido a cirurgias e ter dois rins em vez de apenas um, mas não são riscos absurdos. Um estudo da Universidade Johns Hopkins envolvendo mais de 80 mil doadores ao longo de 15 anos mostrou que o risco de morte nos primeiros 90 dias pós-cirurgia é de 3,1 por 10.000, ou seja, menor do que o de retirada da vesícula biliar (18 por 10.000). Também não se verificaram problemas de longo prazo. Apesar de o grupo de doadores exibir taxas um pouco maiores de hipertensão arterial e proteinúria, sua expectativa de vida é a pelo menos a mesma da da população geral. Alguns trabalhos chegaram até a indicar que era um pouco maior, o que pode ser atribuído a um viés de seleção (é preciso estar saudável para ser doador) e aos maiores cuidados com a saúde após a operação.

Diante dessas evidências, é difícil sustentar que doador remunerado está cometendo uma loucura movido pelo desespero. Ele até pode estar agindo sob intensa pressão econômica, mas não chega a atentar contra a própria saúde.

Voltando à fila dos rins, o único país do mundo que conseguiu acabar com ela foi o Irã, que, não por acaso, é também o único em que o mercado de órgãos é legal e regulamentado.

Sei que citar o caso de um Estado que condena mulheres adúlteras à morte por apedrejamento não ajuda muito minha argumentação, mas, lembrando que até um relógio parado está certo duas vezes por dia, convido o leitor a analisar a situação sem preconceitos.

Para resumir a história iraniana, até 1988 o país vivia situação análoga à de várias outras nações da região, com baixíssimos índices de transplante, quase todos entre pessoas aparentadas, pois várias lideranças religiosas faziam objeções aos órgãos extraídos de cadáveres. Em 1988, teve início o programa de enxertos com doador não aparentado e o panorama começou a mudar. O número de procedimentos realizados foi crescendo paulatinamente e, no final de 1999, a fila já havia sido eliminada.

O programa é dirigido por ONGs que se encarregam até de encontrar um doador compatível. Para garantir que os pacientes pobres não fiquem sem órgãos, o Estado iraniano paga 10 milhões de riais (cerca de US$ 1.000) para cada doador. É claro que estamos falando de um país de Terceiro Mundo. Isso significa que, ao pagamento oficial, a família do paciente costuma acrescentar uma gratificação extra que, embora seja tecnicamente ilegal, é praticada a céu aberto. De toda maneira, como não há filas e as cirurgias são custeadas pelo poder público, a objeção de que a criação de um mercado de órgãos necessariamente alijaria os mais pobres não se mostrou exata no caso iraniano.

Mais detalhes sobre a experiência persa podem ser encontrados neste artigo de Ahad Ghods, nefrologista da Universidade de Ciências Médicas de Teerã.

É claro que nada é tão simples. Um dos riscos de introduzir uma dinâmica de mercado num sistema regido por normas de parentesco e altruísmo seria reduzir drasticamente as doações voluntárias, que seriam como que conspurcadas pela entrada do dinheiro. Vários experimentos em economia comportamental mostram esse tipo de efeito. Aqui mesmo, no Brasil, tivemos uma experiência não muito boa, quando se tentou introduzir o conceito de doação presumida (em vez de as pessoas terem de indicar que são doadoras de órgãos, os não doadores é que deveriam marcar essa condição).

De alguma forma, porém, as ONGs que conduzem o programa conseguiram escapar a essa armadilha, explorando bem o substrato cultural do país para fazer com que a doação remunerada de rins fosse encarada como uma extensão da velha tradição persa da ama molhada (aleitamento).

O fato é que o caso iraniano foi tão impactante que vários países começaram a estudá-lo para tentar descobrir o que deu certo. O leitor e consultor em saúde Guilherme Sydow Hummel informa que já existem mais de 15 países tratando do tema em seus Parlamentos, entre eles a Dinamarca e a Holanda. Cingapura e Índia devem sair nos próximos anos com peças legislativas que trarão novidades nessa área.

Aproveito a deixa para discutir um pouco mais a fundo as noções de comércio e remuneração. Começo destacando uma assimetria. Se o médico e sua equipe podem ser remunerados por realizar um transplante, se o hospital e os laboratórios que produzem as drogas imunossupressoras também ganham com o procedimento, por que só o doador deve ser excluído dos lucros? Se é o altruísmo que deve animar o processo, por que não aplicá-lo a todas as partes envolvidas?

E, de novo, as coisas raramente são tão simples como nossos esquemas mentais gostariam. Peço agora licença para contar uma piada sexista. O sujeito vira para a mulher e pergunta: "Por US$ 3 milhões você dormiria comigo?". Ela pensa na mãe doente, na faculdade da filha e diz que concorda. O homem então dispara: "E por R$ 20 você dormiria comigo?". Indignada, ela retruca: "Que tipo de mulher você pensa que sou?". E ele: "Isso nós já estabelecemos com a pergunta anterior. Agora só falta acertar o preço".

Olhando nos detalhes, a remuneração ao doador já está presente em algum grau em vários sistemas, inclusive aqueles que proíbem "qualquer tipo de gratificação". Em Israel, por exemplo, é legal reembolsar o doador vivo por despesas médicas e dias de trabalho perdidos. Na Espanha, a lei autoriza pagar por óvulos. Nos EUA, em vários Estados doações de óvulos, esperma e sangue podem envolver pagamento. Mesmo no Brasil, vários municípios oferecem auxílio-funeral a doadores. Há um projeto para federalizar a prática.

O que eu defendo é que, abandonando a hipocrisia e refreando a repulsa natural que a ideia de vender órgãos nos causa (nem todas as nossas intuições morais estão corretas, como tentei mostrar na coluna de um mês atrás em que comentei o último livro de Jonathan Haidt), tentemos avaliar de modo objetivo se os nossos sistemas não se beneficiariam de intervenções baseadas no incentivo monetário. Foi exatamente isso que a ONG britânica Nuffield Council on Bioethics procurou fazer. Reuniu um grupo de médicos, antropólogos e filósofos e os encarregou de produzir um amplo estudo sobre a matéria. A iniciativa resultou num catatau de 272 páginas que está disponível no site da organização. Uma das principais conclusões é a de que um sistema baseado no altruísmo é desejável, mas não é incompatível com iniciativas que envolvam algum tipo de recompensa pecuniária.

Não estou entre os que acreditam que o mercado é capaz de resolver todos os males. Frequentemente, tudo o que ele consegue é adicionar novas complicações às que já existiam. Mas, se há algo que ele faz com alguma eficiência, é aparecer com a oferta quando se estabelece um prêmio adequado. Não há por que deixar de utilizar essa faceta, se ela vai produzir mais bem do que mal.

A ideia de que pobres se poriam a vender partes de si mesmos para resolver seu problema econômico, no que configuraria uma espécie de extorsão orgânica, parece-me falaciosa. Muita gente passa por constrangimentos financeiros (a maioria da população, ouso dizê-lo), mas nem por isso sai por aí roubando, se prostituindo ou vendendo pedaços do corpo e filhos no mercado negro (que já existe). Ainda que muitos ficassem tentados a trocar um rim por alguns milhares de reais, não vejo por que tirar-lhes o direito de decidir por si mesmos. Esse é um tipo de paternalismo que me parece pouco compatível com uma bioética centrada na autonomia do indivíduo.

E por que o gesto altruístico e desinteressado seria melhor do que o pecuniariamente motivado? Quem doa órgão a um parente ou mesmo o bom samaritano que oferece de graça parte de si a um completo desconhecido não está tentando aplacar sua própria consciência ou obter uma vaguinha no céu? Essas são recompensas que talvez não possam ser exprimidas monetariamente, mas que, nem por isso, deixam de ter alto valor. Será que, consideradas todas as dimensões, existe mesmo um gesto desinteressado?

Na dúvida, eu fico com o comediante norte-americano George Dennis Carlin segundo o qual não é sábio tornar ilegal a venda de algo que pode ser dado de graça totalmente dentro da lei. A frase se referia à prostituição, que é proibida em quase todos os Estados dos EUA, mas se aplica perfeitamente ao comércio de órgãos em escala global.

PS- Não conseguirei escrever a coluna da semana que vem. Retomo-a no dia 31.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

As Últimas que Você não Leu

  1.  

Publicidade

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página