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hélio schwartsman

 

31/05/2012 - 07h07

Ao vivo e em cores

Ensino à distância, e-learning, livros eletrônicos, wikipedia, fóruns e blogs de especialistas etc. Até que ponto a tecnologia pode transformar a forma como aprendemos e obtemos informações? Já sentimos alguns dos efeitos da revolução da informática e, acredito, estamos apenas no começo.

Seria difícil superestimar o papel das invenções sobre o aprendizado. Para sermos precisos, quase tudo o que sabemos é resultado de uma grande inovação tecnológica criada cerca de 5.500 anos atrás, a escrita. Sem ela, dificilmente teríamos ultrapassado o limiar das culturas de transmissão oral, que são severamente limitadas pela memória individual.

Os que gostam de voar alto vão curtir as ideias do filósofo Nick Bostrom, de Oxford. Para ele, se nossos descendentes forem capazes de criar ambientes simulados realistas e de produzir uma consciência artificial, conseguirão gerar realidades virtuais que serão, para todos os efeitos, indistinguíveis de nosso universo. Se cada humano todos os dias depois que chegar do trabalho ligar seu computador e acionar um programa do tipo "crie o seu mundo", em pouco tempo teríamos gerado uma infinidade de universos paralelos. E isso é provavelmente o mais perto que podemos chegar de ser deuses.

Passados alguns éons, um recenseamento cósmico talvez indicasse que a maior parte do multiverso é constituída de chips e bytes, sendo nosso mundo baseado na biologia do carbono uma raridade entre os seres dotados de autoconsciência. Uma análise estatística certamente levaria um habitante desse possível multiverso a pensar no mundo de carbono como uma simples simulação! Aliás, será que já não vivemos numa?

De volta à realidade, ainda estamos muito longe de poder criar mundos, se é que essas ideias são de fato distinguíveis de um delírio. Acredito até que existe uma importante barreira biológica a impedir uma difusão mais acentuada e decisiva das tecnologias de ensino à distância --e é isso o que eu gostaria de discutir nesta coluna.

Esse limite, penso, atende pelo nome de hipersocialidade. Nós, humanos, somos a espécie mais social do planeta. Sem contato direto, constante e próximo com nossos semelhantes, nem a nossa biologia funciona direito. E as tecnologias ainda não são capazes de proporcionar um nível de interatividade que substitua o intercâmbio com outros humanos.

Exemplos convincentes da necessidade de diálogo real vêm da linguística, que, não por acaso, estuda o mais especificamente humano dos fenômenos sociais. Pesquisadores como Susan Ervin-Tripp, nos anos 70, e Peyton Todd e Jane Aitchison, nos 80, mostraram como crianças que não eram expostas à linguagem oral de forma interativa nos primeiros anos de vida ficavam com sérias deficiências para ouvir e falar.

Um caso que ficou famoso na literatura é o do garoto Vincent, um filho de pais surdos-mudos, mas que ele próprio não sofria de nenhum problema auditivo. Desde pequeno, foi treinado pelos genitores para comunicar-se com eles através da linguagem de sinais, na qual era totalmente competente. Os pais também o encorajaram a assistir bastante televisão e regularmente, acreditando que o aparelho lhe proporcionaria um modelo para falar e ouvir. Só que a TV não substituiu diálogos reais, e Vincent não desenvolveu a fala. Não conseguiu nem sequer adquirir competência para entender o que ouvia.
Esse tipo de efeito não é de todo inusitado. Ao que tudo indica, o cérebro é um órgão que se autoprograma à medida que vai recebendo os estímulos certos, numa complicada interação entre genes e ambiente.

Os genes sozinhos seriam incapazes de programar um cérebro. Nós temos apenas 25 mil genes, enquanto nossos cérebros contam com cerca de 100 bilhões de neurônios, que se ligam a milhares de outros, perfazendo um total de 1014 (o número 1 seguido de 15 zeros) conexões nervosas.

Tamanha desproporção sugere que a informação genética é insuficiente para especificar o lugar de cada neurônio no cérebro, bem como os pontos de ligação com outras células nervosas. Os genes trazem regras muito gerais de desenvolvimento e migração neuronal, que sofrem ajustes ao longo do processo.

A sintonia fina cerebral se faz pela criação de numerosas ligações entre os neurônios (sinaptogênese), seguida da eliminação das conexões que não foram utilizadas (poda). O adjetivo "numerosas" aqui não é força de expressão. Entre a metade da gestação e os dois anos de idade, o cérebro forma 1,8 milhão de novas sinapses por segundo!

O processo de poda é bem mais lento: estende-se até o final da adolescência. Os principais guias a definir quais sinapses serão preservadas e quais cortadas são a necessidade e o prazer. Isso mesmo, o prazer. É ele que nos leva a buscar as experiências certas. As conexões que mais produzem prazer são constantemente estimuladas e, por isso, reforçadas; as menos utilizadas (nem necessárias nem prazerosas) acabam sendo eliminadas.

Num experimento que em algum sentido lembra o caso de Vincent, gatos têm os olhos tapados ao nascer. Sem a experiência da visão presidindo à geração e poda de sinapses, o cérebro deles não aprende a enxergar. Se a venda só for retirada após uma determinada fase crítica de desenvolvimento, os gatos ficam cegos para sempre, embora seu equipamento óptico esteja em perfeitas condições.

Se esse modelo pode ser aplicado ao aprendizado da língua, a experiência de receber passivamente estímulos televisivos não é tão prazerosa quanto a de uma relação dialógica com outro ser humano de carne e osso. Ela não basta para a aquisição da linguagem. Se você pretendia ensinar inglês a seu filho fazendo-o assistir ao Cartoon Network com som original, pode esquecer.

Outros experimentos naturais como o de Vincent mostram o que mais as tecnologias não são capazes de fazer (pelo menos por enquanto).

Um mito popular e recorrente é o de que a TV pasteuriza a língua, impondo uma forma única de falar e destruindo dialetos regionais. Jack Chambers oferece bons indícios de que isso é uma bobagem. Segundo ele, o máximo que a TV faz é popularizar algumas expressões, como o "iabadabadu" de Fred Flintstone, que não costumam ter vida muito longa na língua. São modismos rápidos.

Se a "máquina de fazer doidos" de fato mudasse a forma de falar das pessoas a ela expostas, não teríamos assistido à crescente divergência entre o "Ebonics", o dialeto falado pelos negros norte-americanos de menor extração social, e o "standard English". Chambers, que é justamente um especialista em dialetos, diz que a diferença entre as duas formas de falar se acentuou ao longo das últimas décadas, muito embora os jovens negros estejam entre as populações que passam mais tempo diante da TV, que "fala" quase que exclusivamente o inglês padrão.

Tecnologias já fizeram muito pela educação e certamente vão fazer ainda mais. Mas, por maior que seja a plasticidade de nossos cérebros, nós ainda somos um bicho especialmente ávido por contato com outros humanos. Até que os computadores e outras geringonças consigam replicar tudo o que vem no pacote das interações sociais, eles ficarão sempre aquém dos relacionamentos ao vivo e em cores. Se não me engano, foi E.O. Wilson quem afirmou que o homem é 90% macaco e 10% formiga.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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