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hélio schwartsman

 

21/02/2013 - 03h00

Oriente e Ocidente

Um dos bons livros que li nas férias é "Why the West Rules --for Now" (por que o ocidente domina o mundo --por enquanto), de Ian Morris. A obra, mais especificamente um catatau de 768 páginas, já não é tão nova (saiu em 2010), mas tinha passado abaixo de meu radar. Agradeço a meu primo Alexandre Schwartsman por ter me chamado a atenção para este texto que, além de conseguir responder à pergunta que lhe dá título, propõe um novo modelo historiográfico.

Morris é classicista e arqueólogo. Começou a carreira fazendo escavações na Grécia e na Itália. Hoje dá aulas na Califórnia e escreve livros. Mas ele nutre também forte interesse por ciências, aí incluídas climatologia, medicina, geologia, geografia, sociologia, economia e, é claro, história. E ele usa cada uma dessas disciplinas e mais um pouco para compor essa ambiciosa obra, que pretende analisar com algum detalhe os principais lances dos últimos 16 mil anos (quando as noções de Ocidente e Oriente começam a fazer algum sentido) para entender a vantagem econômica de que gozam os países do nosso hemisfério e tentar antecipar os próximos passos. O subtítulo do livro é eloquente: os padrões da História e o que eles revelam acerca do futuro.

Em termos filosóficos, Morris não gosta de complicar as coisas desnecessariamente. Ele parte do pressuposto (na verdade, até gasta algumas páginas do livro para demonstrá-lo) de que não existem diferenças biológicas relevantes entre os vários povos. De um modo geral, a humanidade é uma só, e as pessoas buscam mais ou menos as mesmas coisas e são motivadas pelos mesmos impulsos. O que o próprio autor chama de Teorema de Morris reza: "Mudanças são provocadas por pessoas preguiçosas, gananciosas e assustadas que procuram maneiras mais fáceis e mais lucrativas de fazer as coisas. E elas raramente sabem o que estão fazendo".

Se a matéria-prima é sempre essa, diferenças no desenvolvimento dos povos têm como causa principal diferenças no ambiente em que eles vivem. Ou, como escreve Morris: "biologia e sociologia explicam as similaridades globais, enquanto a geografia explica as diferenças regionais. Nesse sentido, é a geografia que explica por que o Ocidente domina o mundo".

Essas diferenças regionais assumem muitas formas, como o número de plantas e animais domesticáveis e outros recursos naturais à disposição do grupo, possibilidades de intercâmbio com outros assentamentos (isto é, montanhas, rios e desertos separando povos), patógenos presentes no ambiente circundante, riscos climáticos etc. Até aí, a tese do autor não é muito diferente da de Jared Diamond, exposta com brilhantismo em "Armas, Germes e Aço". Mas Morris torna a discussão um pouco mais sofisticada ao defender que, apesar de as diferenças geográficas iniciais serem bem marcadas e favorecerem bastante o Ocidente, a História não é um jogo de cartas marcadas.

Vale lembrar que esse é um campo minado para historiadores, que se dividem entre os que acham que o presente é determinado pelo passado longínquo e os que creem que a História obedece a um ciclo curto. Para estes, seria perfeitamente possível que a China e não o Ocidente tivesse feito a revolução industrial alguns séculos atrás, hipótese em que Pequim e não Londres-Washington teria ditado as regras nos últimos tempos.

Encontros periódicos com o caos são uma constante na história da humanidade. Mudanças climáticas, fomes, falências do Estado, migrações e epidemias devastadoras não pouparam nenhuma civilização. Ao contrário, levaram algumas delas ao colapso final.

Outro fator importante a assegurar o caráter não determinístico da História é o que o autor chama de vantagem do atraso: muitas vezes, o grupo que adota a tecnologia com um certo atraso, leva a melhor --pelo menos por um tempo. Embora a agricultura tenha surgido nas terras altas da Mesopotâmia, logo os povos que habitavam os vales dos rios Tigre, Eufrates e Nilo se viram numa posição mais vantajosa que os descobridores iniciais. E, depois que a economia agrícola ficou dependente de Estados fortes e comércio, foi a vez de cidades-Estado à beira do Mediterrâneo prosperarem. Nós nunca sabemos de antemão onde estará a próxima mina de ouro. Aliás, a tecnologia tende a mudar o valor de tudo. Até o fim do século 19, o petróleo não era nada. Tornou-se o ouro negro.

Vale aqui alertar que os conceitos de Ocidente e Oriente usados por Morris não são exatamente os mesmos com os quais o leitor de jornais está acostumado. Para o autor, são ocidentais todos os povos cujas culturas remontam principalmente ao núcleo agrícola que surgiu na Alta Mesopotâmia por volta de 9.500 a.C. e orientais os tributários do núcleo oriental, que teve início na China nas imediações de 7.500 a.C. Isso faz com que, de forma talvez contra intuitiva, árabes e persas façam parte do Ocidente.

Voltando à obra de Morris, ele faz uma comparação sistemática de qual hemisfério esteve à frente em cada fase da História. Para tanto, ele propõe um índice de desenvolvimento social que leva em conta o consumo de energia, o nível de organização (dado pelo tamanho das maiores cidades), o gerenciamento de informações e o poderio bélico. Poupo o leitor da longa discussão teórica que levou à escolha destes e não de outros parâmetros que seriam igualmente válidos. Apenas lembro que Morris tinha a dificuldade bastante prática de encontrar critérios para os quais fosse possível pelo menos estimar números desde a última Idade do Gelo (a propósito, o autor acaba de lançar um livro dedicado justamente ao problema da medida, que, infelizmente, ainda não está disponível em versão eletrônica).

O quadro que emerge da comparação dos índices é que o Ocidente saiu um pouco à frente do Oriente e assim permaneceu por 90% dos últimos 16 mil anos. As linhas se cruzaram pela primeira vez por volta de 540 d.C., quando o Oeste experimentava a decadência que se seguiu à queda de Roma e o Oriente já vivia o início da expansão sob a dinastia Song, que teve seu apogeu em 1100 d.C.

A segunda vez que elas se cruzaram foi um pouco antes de 1900, já sob o impacto da Revolução Industrial. A explosão inicial foi momentosa. Em poucos anos o índice saltou dos cerca de 50 pontos, que haviam sido uma espécie de teto histórico, para mais de 150. Mas o Oriente não demorou muito para seguir nos mesmos passos e, valendo-se de mais um capítulo da vantagem do atraso, está em vias de ultrapassar novamente o Ocidente, o que deve ocorrer por volta do final deste século.

É impossível, nestes poucos parágrafos de que disponho, descrever a erudição histórica e a riqueza das análises de Morris nem a forma como ele articula conhecimentos oriundos de disciplinas tão diversas. Para mim pelo menos, quase um analfabeto na história chinesa anterior ao século 20, o autor descortinou um novo universo.

O melhor do livro, entretanto, talvez não esteja no que Morris tem a dizer sobre o que já aconteceu, mas no que ele antevê para o futuro. Seu método de buscar padrões no passado profundo pelo menos nos deixa de sobreaviso quanto a confundir soluços históricos com tendências de longo prazo. Não seria de modo algum impossível que fosse a China e não o Ocidente a fazer a Revolução Industrial, mas isso teria sido improvável, dadas as vantagens comparativas que o Ocidente carregava, senão desde o surgimento da Agricultura, pelo menos desde que a Europa dominou o comércio Atlântico.

E a China poderia ter descoberto a América, hipótese em que as condições se inverteriam? Talvez sim. O almirante Zheng He, que entre 1405 e 1433 comandou em diversas expedições a mais admirável frota naval jamais construída até então, provavelmente teria conseguido atravessar o Pacífico. Mas a vantagem e a necessidade estavam com os europeus. Além da distância menor, eram eles que precisavam descobrir um caminho para as Índias. História não é destino, mas encerra dinâmicas e tendências que produzem lá seus efeitos.

E quanto ao futuro? Bem, ao que tudo indica, algo de muito dramático precisaria acontecer para que a China não supere os EUA nas próximas décadas no índice de desenvolvimento social (lembrem-se que ele mede as condições do grupo, não de indivíduos). Mas o que isso significa? Talvez não muito. O grande salto nos valores do índice veio com a explosão tecnológica pós-Revolução Industrial. A partir de então o mundo todo foi se tornando cada vez mais complexo e interdependente, o que é ao mesmo tempo uma maldição e uma bênção.

Daí tanto poderá vir uma grande derrocada global (algo como uma pandemia dizimadora ou um holocausto nuclear) como uma nova revolução científico-tecnológica (energia ilimitada grátis, por exemplo) que tornará o próprio trabalho uma relíquia histórica. Na segunda hipótese (e talvez também na primeira) a própria noção de Ocidente e Oriente, que começou a fazer sentido 16 mil anos atrás, provavelmente já não significará nada além de um ponto cardeal.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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