É bacharel em filosofia, publicou 'Pensando Bem...' (Editora Contexto) em 2016.
Escreve às terças, quartas, sextas, sábados e domingos.
Entregando o ouro
Deus é testemunha de que não tenho nada contra o esporte. Além de matar e morrer pelo Corinthians, gosto de ver as atletas da ginástica olímpica se estatelando contra o solo e até dou minhas corridinhas. De vez em quando, encaro os 42 km de uma maratona. Não é, portanto, por sedentarismo militante que dedico esta coluna a vilipendiar o Pan.
Minha preocupação é principalmente de ordem econômica. Em 2002, quando da candidatura do Rio de Janeiro a sede dos jogos, o Comitê Olímpico Brasileiro estimou o total de gastos em R$ 414 milhões (valores já corrigidos pela inflação), a maior parte bancada pela prefeitura. Cerca de 20% dos recursos viriam da iniciativa privada. Ao fim e ao cabo, a brincadeira saiu por R$ 3,7 bilhões, mais da metade proveniente das burras federais. Praticamente nada veio de empresas particulares.
Tudo bem. Obtivemos 54 medalhas de ouro, nossa melhor participação em Pans e quase superamos os comunistas ateus caribenhos. Com todo respeito aos atletas que se esforçaram para conseguir suas auricomendas, R$ 69 milhões para cada medalha dourada parece-me um preço exagerado.
Se tudo não passasse de incompetência para planejar eu não estaria sendo tão severo com os organizadores torneio continental. O meu receio é justamente o de que esse pessoal seja muito competente numa outra modalidade, que não está catalogada no rol olímpico, mas no Código Penal. Como explicar, por exemplo, que a reforma do Maracanã, orçada em 2005 em R$ 75 milhões, tenha consumido R$ 294 milhões? É mais que o suficiente para erguer novos e moderníssimos estádios. O de Leipzig, usado na Copa da Alemanha de 2006, saiu por R$ 244 milhões. O de Seogwipo, na Coréia do Sul, edificado para a Copa de 2002, ficou em R$ 203 milhões.
Se essa dinheirama pelo menos revertesse em ganhos permanentes para a cidade do Rio de Janeiro, eu não estaria sendo tão ranzinza. Não é, infelizmente, o caso. Dessa novela toda, só o que deverá ficar são alguns novos equipamentos esportivos e a vila olímpica, que ninguém sabe exatamente para que servirá. R$ 3,7 bilhões é um preço extorsivo para tão pouco. E que não venham as autoridades alegar que foram surpreendidas pelo baixo retorno. Economistas já até criaram o termo "maldição olímpica" para referir-se às cidades que despendem rios de dinheiro para sediar megacompetições esportivas e depois ficam a ver navios.
Se as autoridades tivessem um mínimo de respeito pelo contribuinte estariam fazendo tudo para evitar que o Brasil venha a ser escolhido para sediar a Copa de 2014 ou os Jogos Olímpicos de 2016. Aí, os R$ 3,7 bilhões agora torrados virariam uma brincadeira de crianças.
E, já que estou embalado nas críticas ao Pan, examinemos outros aspectos negativos do evento. Incomoda-me sobremaneira os incontidos brios nacionalistas que os jogos despertaram. Não estou, evidentemente, sugerindo que deveríamos torcer pela Argentina quando ela enfrenta o Brasil. Mas há uma diferença entre incentivar de forma saudável equipes e atletas do país e vaiar os competidores estrangeiros, o que viola o chamado espírito olímpico além de todas as regras da hospitalidade e da boa educação. A única vantagem desse comportamento é que ele torna mais remota a possibilidade de que o Rio de Janeiro venha um dia a sediar Jogos Olímpicos, pelo que os cofres públicos agradecem.
Agora que abri a caixa de Pandora da maledicência esportiva, vamos até o fim. Também fiquei impressionado com a virtual ausência de casos de doping no Pan. Ainda não sei se temos aí a explicação para os baixos índices técnicos registrados nesta competição ou se estamos diante da alta estatura ética dos atletas de nosso continente.
Seja como for, vale a pena mergulhar no maravilhoso mundo do doping esportivo. Até admito que existe uma racionalidade por trás da idéia de que utilizar-se de aditivos químicos representa uma espécie de concorrência desleal em relação ao atleta que não se vale da farmacopéia. Só que essa é uma daquelas teses que só funcionam no papel.
Aceitá-la plenamente implica discriminar parcelas significativas da humanidade, o que vai contra os ideais olímpicos. Tomemos o caso do "Tour de France", mais ou menos concomitante ao Pan. Bem, essa que é a principal competição de ciclismo do planeta por pouco não acaba devido à falta de competidores, uma vez que parcela significativa dos participantes apresentou resultados positivos no antidoping.
Entre as drogas favoritas dos ciclistas estão corticóides e broncodilatadores. Os broncodilatadores são substâncias que pertencem à classe dos beta-2-agonistas. Para efeitos olímpicos, estão incluídos na categoria mais ampla de agentes anabolizantes. Os beta-2-agonistas. Aumentam a capacidade respiratória do atleta. Também poderiam diminuir a sensação de fadiga e estimular a agressividade. Já os corticóides são poderosos antiinflamatórios sempre empregados com cautela na medicina, pois provocam rapidamente uma série de efeitos colaterais. Sua utilização esportiva visa também ao aumento da capacidade respiratória e à diminuição da fadiga. A proibição dessas drogas faria sentido se todos que as tomassem visassem apenas a obter vantagens indevidas na competição. Só que esses fármacos também têm uso legítimo. Um asmático medianamente grave, por exemplo, não pode passar sem eles. E isso vale para a maior parte das substâncias banidas pelo Comitê Olímpico Internacional (COI), que incluem anti-hipertensivos e remédios para diabéticos.
Será que as autoridades máximas do olimpismo internacional querem excluir portadores de determinadas moléstias da prática de esportes em nível competitivo? É verdade que muitos dos medicamentos proibidos podem ser substituídos por outras drogas não-proscritas. Mas isso não vale para todas as doenças e menos ainda para todos os atletas. Não é impossível, portanto, que as listas de drogas banidas do COI estejam prejudicando a saúde de alguns atletas.
Na verdade, a própria noção de vantagem indevida --o argumento forte para proscrever algumas classes de fármaco-- é um conceito precário. Drogas ou métodos que aumentam a concentração de glóbulos vermelhos no sangue e, conseqüentemente, melhoram as trocas gasosas teciduais são proibidos. É o caso da hoje onipresente eritropoietina. É possível, contudo, obter o mesmo efeito mudando-se para cidades localizadas em grandes altitudes, como La Paz. Uma interpretação draconiana da vantagem indevida recomendaria impedir bolivianos e tibetanos de participar dos Jogos Olímpicos.
E vale lembrar que as autoridades esportivas não se limitam a tentar evitar que alguém obtenha as tais das "vantagens químicas indevidas". Arrogando-se o papel de regulador moral que ninguém lhe atribuiu, o COI também proíbe o uso de drogas "potencialmente danosas" à saúde do competidor, mas que não têm nenhuma chance de melhorar-lhe o desempenho. É o caso do álcool, da maconha e de narcóticos em geral. Ora, se um sujeito caindo de bêbado consegue vencer uma maratona, deveria ganhar duas e não uma medalha, pois ele é insofismavelmente muito melhor que os demais.
Pensando melhor, talvez o problema não esteja nos gastos absurdos e totalmente fora do planejamento, nem na imbecilidade do nacionalismo e nem mesmo nas regras sem pé nem cabeça do COI. Quanto mais escrevo, mais me convenço de que o problema sou eu. Já deveria ter aprendido que é bobagem cobrar racionalidade do ser humano.
PS - Na semana que vem não poderei escrever a coluna. Retomo-a no dia 16 de agosto.
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